Krishna.Nunes 14/02/2022Infelizmente não é DostoiévskiConsiderado por Nabokov uma das maiores histórias de amor da literatura mundial, por Faulkner um dos maiores romances de todos os tempos e por Mann o mais poderoso romance social, a expectativa criada para a leitura de Anna Kariênina é de uma trama arrebatadora com personagens profundos e cativantes.
A verdade, entretanto, é que se trata de uma história tola sobre pessoas fúteis, dignas de uma novela das 21h. É traçado um panorama muito bem elaborado da sociedade russa da época, porém os protagonistas são a burguesia das grandes cidades, com cujos interesses, dramas e anseios é muito difícil nos conectarmos. Enquanto os protagonistas dos grandes romances de Dostoiévski estão sempre em crise financeira e emocional, envoltos em uma situação que os deixa permanentemente à beira de um colapso, as grandes preocupações dos protagonistas de Anna Kariênina são os chás, saraus, que roupa usarão para ir à ópera e fofocar sobre a vida pessoal de quem comparece à corrida de cavalos.
Aquela pungência e sensação de imediatismo que permitem nos aprofundarmos nas psicologias das personagens de Dostoiévski está completamente ausente nesta obra de Tolstói. Nesse aspecto, Anna Kariênina é superada largamente por Ivan Ilítch, um livrinho curto porém muito mais profundo.
O título dessa obra bem que poderia ser Konstantin Lióvin, já que a maior parte do livro é sobre ele, e ele é o único personagem que chegamos a conhecer intimamente e com profundidade. Apesar de ter uma personalidade insuportável no início, os sentimentos e conflitos de Lióvin (supostamenta um alter ego do próprio autor) são muito mais interessantes do que os da personagem que dá título ao livro.
Dizem que tanto Anna Kariênina quanto Madame Bovary são exemplos precoces do feminismo. Enquanto Flaubert foca nos detalhes e minúcias, Tolstói prefere se dedicar aos questionamentos sobre o sentido da vida, e é isso que me impede de dar uma nota ainda menor. Já a vida da mulher insatisfeita que trai o marido e decide enfrentar a todos por amor enquanto literalmente enlouquece não me atrai. Não me considero capaz de julgar o aspecto feminista da obra, mas sei que existem melhores inspirações para protagonistas femininas do que mulheres transtornadas por causa de suas próprias escolhas. O destino de Anna na trama poderia ser completamente outro, não fosse uma cadeia de decisões erradas, junto com comportamentos absolutamente inexplicáveis que ela apresenta em quase toda a extensão do romance.
Dessa forma, duas tramas alternadas, ou até paralelas - a de Anna e a de Lióvin, são desenvolvidas de maneira que uma seja espelho e contraponto da outra. O que o autor parece querer demonstrar é que a felicidade conjugal só pode existir quando há uma sincera comunhão espiritual entre os cônjuges, e quando a relação é baseada na amizade e na fé. Ao mesmo tempo, os relacionamentos estão condenados à infelicidade e à falência quando há infidelidade ou separação. (Notadamente da mulher, a traição do homem pode ser facilmente perdoada.)
Ainda que o livro tenha algumas cenas memoráveis como a corrida de cavalos, a morte de Nikolai e o parto de Kitty, a maior parte dele é composta de amenidades, dramalhões, cotidiano ou cenas tediosas como as caçadas e as eleições.
Tolstói é considerado o criador do fluxo de consciência, mas neste livro a técnica de monólogo interno aparece poucas vezes e por pouco tempo, ao contrário de outras grandes obras do realismo russo do mesmo período. Ela vem a ser bem utilizada somente na última parte, onde mais uma vez são os questionamentos de Lióvin que merecem destaque.