Flávia Menezes 03/11/2022
CLUBE DOS REJEITADOS: A GRÁVIDA, O MESTIÇO E O PASTOR TRAÍDO
?Luz em Agosto?, publicado em 1932, é um romance gótico sulista e modernista do escritor norte-americano William Faulkner, no qual o autor se muniu de muita coragem e ousadia para penetrar no coração do puritanismo e do racismo americano, para desnudá-lo de tal forma, que acabou por torná-lo um dos mais poderosos romances do século XX.
A cada página, vamos nos encantando com essa prosa carregada de genialidade narrativa, onde, sem nenhuma ordem, e frequentemente interrompida por longos flashbacks e constantes mudanças de focos narrativos, os fatos vão emergindo de forma interposta, por meio de conversas, onde Faulkner permite que diferentes personagens possam emprestar sua voz com os seus próprios costumes idiomáticos sulistas. Ao contrário de em ?O Som e a Fúria?, em ?Luz em Agosto? o autor não conta somente com a narração em fluxo de consciência, mas também incorpora o diálogo e um narrador onisciente em terceira pessoa que desenvolve a história.
Ler Faulkner nunca será uma experiência simples, pois essa sua fala poética, filosófica de vertente existencialista, carregada de simbolismos, é bastante trabalhosa, e muitas vezes precisamos ler várias vezes o mesmo parágrafo para entender o que ele quis dizer. O que faz desse livro um momento de imersão e total abandono ao ato da leitura. Mas não é assim que deveríamos nos entregar às nossas leituras?
E entre metáforas e extremismos (luz-escuridão, bem-mal), racismo e puritanismo, mergulhamos na vida de três personagens: Lena Grove, uma jovem que engravida e é abandonada pelo pai do seu filho, saindo à sua procura; Joe Christmas, um homem que é entregue a um orfanato pelo próprio avô e passa a vida acreditando ter sangue negro correndo pelas suas veias; e o reverendo Gail Hightower, que passa uma vida toda obcecado pela morte do avô na Guerra de Secessão, e é para sempre atormentado pelo fantasma da esposa misteriosamente morta em um de seus momentos de escapadas extraconjugais.
Uma das coisas mais brilhantes da escrita do Faulkner é como ele desenvolve seus personagens. Sua construção não se restringe à personalidade e uma história de vida pregressa. Ele vai tão além, que há momentos em que você sente vontade de parar, pegar uma caneta e papel, e desenhar a árvore genealógica para compreender todos os enlaces que envolvem a ancestralidade dos personagens.
Um outro ponto de genialidade da construção dos personagens do Faulkner, é que não existem vilões e mocinhos. Nessa vertente existencialista do autor, seus personagens são tão reais, que você consegue ver a humanidade deles pulsando a cada momento em que suas vidas são esmiuçadas de tal forma, que chega a ser doloroso.
Houve um momento da leitura, onde a vida do personagem Christmas era contada, que eu tive que parar por um instante para me recuperar da intensidade das emoções que me foram despertadas pelas crenças que ele tinha de uma vida onde não era possível amar, porque amar era mais doloroso do que o odiar, ou ferir. De fato, amar para ele era ser ferido, e mortalmente. Mas não é o amor um ato de morrermos para nós mesmos, para o nosso egoísmo, e nos voltarmos às necessidades de um outro?
Aliás, esse tema, o amor, é algo bastante explorado neste livro, mas não pelo olhar romântico, e sim, pela visão dos vínculos relacionais.
Eu tenho essa visão de um Faulkner existencialista, mas também há nele essa consciência sistêmica, onde aqueles que nos precedem são tão importantes a ponto de estarmos ligados às suas vidas por vínculos indissolúveis. Tenha havido amor ou afeto, ou não. De fato, para Faulkner, seus personagens são parte daqueles que lhes deram a vida, que o autor não poupa esforços para desenvolver histórias familiares muito bem construídas, incluindo as sinas que se passam de gerações para gerações. O que até me fez lembrar do livro que li recentemente, que fala sobre a hereditariedade dos traumas familiares, que já são comprovados cientificamente. E me remeter a um livro como esse, só comprova o nível de maestria de William Faulkner.
Por isso é tão difícil não criar empatia com cada um dos personagens. Sejam eles bons ou não, estúpidos ou não, o fato é que essa simplicidade sulista impressa em uma vida de sofrimentos tão reais, banhados a crenças, rejeição e abandono, nos faz sentir como se estivéssemos sendo colocados de frente a um espelho, e cada personagem pudesse refletir, de algum jeito, e em alguma profundidade, cada uma dessas emoções e sentimentos que também existem em nós.
Não é à toa que Albert Camus admirava tanto Faulkner, pois nessa facilidade para tecer a realidade em suas obras, a sua personagem, Lena Grove, em sua comovente teimosia em prosseguir indo atrás de um homem que a abandonou grávida, faz uma verdadeira alusão ao absurdo da existência que Camus tanto defendia.
Existem muitas partes desse livro que me tocaram profundamente, e me levaram até às lágrimas, ou que me provocavam aquela dor interna de quando um sofrimento transpassa a nossa alma, mas existe uma relacionada à Lena Grove que me deixou bastante tocada, e eu a reproduzo aqui para compartilhar sua emocionante profundidade: ?Quando eles dão o fora em você, você simplesmente pega seja o que for que eles deixaram e vai em frente?. Não é profundo isso?
Escolhi essa parte em especial, porque apesar da rejeição, desrespeito e até do mau-caratismo que se escondem nessas linhas, ela também revela a força que existe naquele que é desprezado, mas que pega o que a vida lhe ensinou, e segue em frente de cabeça erguida. Esse é o ponto chave da história, e da nossa vida: quando aceitamos o passado tal como ele é, estamos prontos para viver o presente, e prosseguir e progredir!
Além do amor, um outro tema que se esconde em cada página é o da identidade. Ser e pertencer a uma família é o que compõe as raízes da nossa existência, e sem elas, não temos como nos manter fortes, e nem firmes para darmos origem aos nossos próprios frutos. E nessa história, essas raízes são detalhadas de forma que podemos compreender cada ato desses três personagens principais. Mesmo sem concordar, apenas somos guiados a compreendê-los.
Escrever uma resenha sobre um livro de William Faulkner é uma tarefa muito difícil, pois a sua obra é tão rica que seria necessário redigir vários artigos para conseguir abranger cada metáfora, cada fenômeno, e cada temática expressa nessas páginas. Algo que não estaria ao alcance dos reles conhecimentos dessa pobre marquesa, mas que ainda assim, vem aqui com coragem e tenta descrever em algumas poucas palavras essa experiência de leitura que nos leva de encontro de nós mesmos, e das nossas mais secretas verdades, sobre quem realmente somos.
Esse é o poder de William Faulkner, que eu espero que um dia você também possa se abrir para experienciar ao seu jeito, ao seu tempo, e com a mais brava atenção para cada sentimento que começará a emergir.