Lista de Livros 27/09/2020
Lista de Livros: A loucura da razão econômica, de David Harvey
Parte I:
“Antes de mais nada, é preciso dizer que há interações imensamente complicadas no campo da distribuição como um todo. Financistas podem canalizar dinheiro e investimentos para a especulação fundiária e imobiliária, dando suporte as atividades das classes proprietárias à custa de todo o resto. Proprietários fundiários usam suas terras como garantia para tomar empréstimos. Na Grã-Bretanha, muitos aristocratas se tornaram banqueiros dessa forma. Com frequência, capitalistas comerciais crescem e dependem de crédito. Em diversas partes do mundo, os salários dos trabalhadores são inflados pelo uso de cartões de crédito. Trabalhadores podem se integrar à circulação de capital portador de juros iniciando um financiamento com a esperança de adquirir sua casa própria. Isso é algo que, conforme assegura o Banco Mundial, confere estabilidade social ou, segundo o velho ditado: “Enquanto não quitar o financiamento, dono de casa própria não faz greve”. Às vezes os trabalhadores são obrigados a depositar suas economias em fundos de pensão, que têm de investir em algum lugar para explorar outros trabalhadores em troca de lucro. Financistas emprestam a governos, enquanto os governos usam os tributos para garantir e afiançar as atividades de instituições de crédito. Enquanto isso, bancos superavitários emprestam a bancos deficitários e, quando preciso, ambos recorrem a bancos centrais. Os papéis se embaralham e muitas vezes são internamente contraditórios. Empresas automobilísticas mantêm mecanismos de venda que concedem crédito aos consumidores para que adquiram seus carros, e muitas vezes é difícil saber se os lucros da empresa vêm da atividade de valorização, de realização ou de distribuição. Financistas emprestam aos incorporadores para que construam casas e aos trabalhadores para que comprem essas casas, internalizando oferta e demanda numa única operação sob o seu comando. Trabalhadores exigem aumentos salariais que podem fazer despencar as ações de companhias em que seus fundos de pensão estão investidos. Sindicatos podem ser compelidos a investir na dívida das empresas que os empregam. Quando a Enron quebrou, a pensão de sua força de trabalho escorreu pelo ralo. Na crise fiscal de 1970, em Nova York, os sindicatos municipais foram forçados a investir seus fundos de pensão na dívida pública municipal, com consequências previsíveis. Governos armam sistemas de participação nos lucros para que depois os empregados tenham interesse em reprimir suas próprias demandas salariais.
Os fluxos e contrafluxos que ocorrem no interior daquilo que pode ser denominado o “campo distributivo” (terreno do Livro III d’O capital) têm se tornado, como ilustram os exemplos acima, cada vez mais complexos e volumosos, ao mesmo tempo que as categorias e os papéis se embaralham e se sobrepõem uns aos outros. Em algumas partes do mundo, o volume de transações e a rotação do capital que atravessa e permeia o campo distribucional ultrapassam consideravelmente as atividades de valorização. O mercado de câmbio é enorme, se comparado com o reinvestimento em manufatura. O mais difícil de discernir é quanto dessa atividade é apenas movimentação especulativa ou ruído transacional, que não tem nada a ver com a criação de valor.”
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Parte II:
“Por que os financistas deveriam celebrar as irrupções violentas de crises? À primeira vista, isso parece um contrassenso. Mas, quando se trata da circulação de antivalor, a crise é um momento de triunfo para as forças do antivalor, ainda que cause desespero em todos os envolvidos na produção e realização do valor. “Em uma crise”, disse o banqueiro Andrew Mellon na década de 1920, “os ativos retornam a seus devidos proprietários”, isto é, a ele. Normalmente as crises deixam em seu alvorecer uma massa de ativos desvalorizados que podem ser comprados a preço de banana por quem tem dinheiro (ou contatos privilegiados) para pagar por eles.”
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Parte III:
“Todos os sete momentos — tecnologias, relação com a natureza, relações sociais, modo de produção material, vida cotidiana, concepções espirituais e estruturas institucionais — se relacionam no interior da totalidade do capitalismo em um processo de evolução contínua, movido pela circulação contínua de capital, que opera, por assim dizer, como o motor da totalidade. Desenvolvimentos em todos os sete momentos — todos autônomos e independentes, mas ao mesmo tempo sobrepostos e vinculados uns aos outros — podem conduzir a totalidade em uma ou outra direção. Pelo mesmo motivo, recalcitrância ou imobilidade em torno de qualquer um dos momentos podem atravancar transformações em processos que estão ocorrendo nos outros. Inovações tecnológicas na forma-dinheiro não levam a lugar algum, como vimos anteriormente, se não forem acompanhadas de no mínimo transformações paralelas nas relações sociais, nas concepções espirituais e nos arranjos institucionais. Novas tecnologias (como a internet e as mídias sociais) prometem um futuro socialista utópico, mas, na ausência de outras formas de ação, acabam cooptadas pelo capital e transformadas em novas formas e modos de exploração e acumulação. Mas, pelo mesmo motivo, mudanças autônomas em um dos momentos podem provocar transformações dramáticas em todo o conjunto. O surgimento repentino de novos patógenos, como HIV/Aids, ebola ou zika, exige rápida adaptação ao longo de todos os sete momentos. A dificuldade de nos organizarmos para lidar com a mudança climática é que isso exige mudanças drásticas em todos os sete momentos. O fato de algumas pessoas negarem o problema (concepções espirituais) ou acreditarem ingenuamente que há uma solução tecnológica única (capitalismo verde) que, como uma bala de prata, pode ser implementada sem mudar mais nada (como, por exemplo, as relações sociais dominantes e a vida cotidiana) faz com que as iniciativas sejam fadadas ao fracasso.
Boa parte da literatura nas ciências sociais favorece algum tipo de teoria unicausal da transformação social. Institucionalistas favorecem as inovações institucionais, deterministas econômicos privilegiam as novas tecnologias de produção, socialistas e anarquistas priorizam a luta de classes, idealistas preferem a mudança das concepções espirituais, teóricos culturais se concentram nas transformações da vida cotidiana, e assim por diante. Marx não pode nem deve ser lido como um teórico unicausal, ainda que diversas representações de sua obra o vejam assim. O Livro I d’O capital, em particular, não pode ser analisado dessa maneira, embora o texto dê muita ênfase aos impactos das adaptações e do dinamismo tecnológicos. Na obra substancial de Marx, não há um primeiro motor, mas um emaranhado de movimentos frequentemente contraditórios pelos diferentes momentos e entre eles que precisam ser identificados e destrinchados.”
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Parte IV:
“Nossa compreensão do mundo se torna refém da insanidade de uma razão econômica burguesa que não apenas justifica como promove a acumulação sem limites, enquanto simula uma infinidade virtuosa de crescimento harmonioso e melhorias contínuas e alcançáveis no bem-estar social. Os economistas jamais enfrentaram a “má infinidade” do crescimento exponencial infindável, que só pode culminar em desvalorização e destruição. Ao contrário, louvam as virtudes de uma burguesia que triunfantemente “capturou o progresso histórico e o colocou a serviço da riqueza”10. Esquivam-se sistematicamente de saber se as crises são inerentes a tal sistema. As crises, dizem eles, devem-se a atos de Deus ou da natureza ou a equívocos humanos e erros de cálculo (em especial aqueles que podem ser atribuídos a intervenções estatais equivocadas). Todos ou qualquer um desses motivos pode provocar um descarrilamento da máquina supostamente imaculada do infinito capitalismo de livre mercado. Mas os economistas insistem que a máquina em si permanece o epitome da perfeição. Quando se depararem com uma crise, os economistas só poderão alegar que, “se a produção fosse realizada conforme os livros didáticos, as crises jamais ocorreriam”.”
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