Mathias.Grossi 08/03/2023
Uma "ideia-prima" numa obra desaproveitada.
Faz tempo que li a obra principal do pensamento do politólogo Sérgio Abranches, de maneira que escrevo essa resenha muito mais porque faz anos que não uso o Skoob e vi que eu a adicionei no meu catálogo de leitura; incitando eu em mim mesmo um desejo de falar sobre esse opúsculo político... Tédio, imagino; mas vamos lá.
Uso a expressão "principal" mais com o intuito único de iluminar que ao falar do autor, fala-se dessa ideia mas não (necessariamente) do livro. Explico: a obra lida por mim em 2021 foi publicada originalmente no período pré-eleitoral de 2018, ano histórico; não obstante ela seja resultado de um ensaio escrito em fins do século passado em que o autor delineia os conformes do que seria o dito "presidencialismo de coalizão". Pois bem, não li tampouco busquei o escrito publicado em 1999; mas suspeito fortemente que seja superior à obra revisitada vinte anos depois.
"Superior", por sua vez, é um termo vago mas completo. e é justamente essa a razão de seu uso por mim aqui: qualquer pode achar um sorvete de chocolate superior ao de morango, o que é entendível e aceitável, mas descamba no subjetivismo à medida que investigamos as raízes dessa preferência. Diz muito sobre quem diz e menos sobre o objeto. Assim, se a ideia (muito interessante) dos dois livros é a mesma; só me resta dizer que a forma como o autor a explica afastou-me veementemente da obra: por isso creio que, no ensaio, temos a noção que o autor criou mas no livro temo-la, também, só que repleta de alguns pontos altos e muitas quedas.
Porque o "Presidencialismo de coalizão" é resumidamente um arranjo político e econômico que perpassa diferentes momentos da história republicana do país e distingue-se dos presidencialismos experimentados em boa parte dos demais países do continente americano. Essa distinção, pois, dá-se com as atribuições (e poderes) que Congresso e Presidência brasileiros possuem, exercidos na beligerância ou na harmonia de uma relação indissociável: o Presidente retém os recursos econômicos que mobilizam os legisladores nos arranjos sociais locais em que eles estão inseridos; no contexto de uma distribuição que demonstra suas capilaridades políticas ou falta delas.
Grosso modo: o Executivo envia recursos maiores para a parte do Legislativo federal que lho apoia, e estes distribuem esses recursos em conformidade com suas áreas de influência estaduais (que se estendem desde os governos regionais propriamente ditos às prefeituras, cada um com seus microcosmos políticos também). Ainda que se possa pensar que essa ideia eufemisticamente narrada por mim seja óbvia, o mérito do autor é demonstrar como ela é surpreendentemente antiga.
O Presidencialismo de coalizão, então descobrimos, sempre existiu: seja com o fortalecimento dos partidos estaduais na Primeira República (1894-1930), com o Congresso ultrafortalecido da Quarta (1946-1964) e com o equilíbrio alternado da atual (1988-). Nesse sentido, brilha aqui a genialidade narrativa do autor enquanto historiador e sociólogo: pois é didática e inteligente a investigação quase estrutural desse sistema, despido quase inteiramente de juízos morais que servem à obra como um panorama repleto de "quês?" e "porquês?".
Por fim, tamanho brilhantismo que atinge seu apogeu ao explicar como esse sistema foi harmônico e, sobretudo, pacífico em governos improváveis como os de Campos Salles, Juscelino Kubistchek e Tancredo Neves primeiro-ministro. Ressalte-se também que uso o termo "pacífico" com o claro intuito, como o autor, de comparar com os sucessivos golpes tentados e sucedidos que se alastraram por todos os demais períodos da história democrática brasileira: exceto alguns interregnos da atual Política nacional.
E é falando destes interregnos, a partir da metade do livro, quando o autor finalmente chega aos tempos contemporâneos (sabiamente ignorando o período ditatorial dos anos 30-40 e 60-80); que a obra parece transmutar-se em outra. A mim me pareceu serem dois livros distintos: "Presidencialismo de Coalizão I: 1894-1990", em que a narrativa envolvente com as explicações conceitualmente boas de detalhes históricos fundamentados de análises sociais e econômicas impecáveis pela forma como são demonstradas suas premissas e conclusões, enfim, isso tudo é substituída pelo livro "Presidencialismo de Coalizão II: 1990-2019", em que o livro simplesmente parece tornar-se uma página da WikiPedia ou do Brasil Escola.
O contraste brutal é, portanto, tão assustador que desgastam totalmente a leitura. Se antes, por exemplo, o autor narrava os rearranjos políticos das oligarquias nacionais em torno do Poder Executivo em contraste com as convulsões e movimentos sociais do país no decorrer dos relevantes acontecimentos políticos dos últimos cem anos, ele troca isso por uma narração quase telejornalística do dia a dia dos presidentes Itamar, FHC e Lula; com direito à datações diárias dos seus afazeres e de reuniões comezinhas do Congresso. Em certo momento, pensei estar lendo os "Diários da Presidência" de Fernando Henrique, publicados entre 2000 e 2015.
Apesar disso, o catatonismo só não supera a decepção de; nas páginas finais, o autor resumir grotescamente o governo de Dilma Rousseff em frases genéricas como "ela perdeu apoio do Congresso e o impeachment prossegiu", similar a um filme preguiçoso que; por falta de planejamento ou mão de roteiro, põe uma tela escura com os dizeres "Vinte anos depois" e descreve o que o protagonista realizou. Especialmente no capítulo sobre a queda da presidente, o autor simplesmente parece copiar e colar frases que ora descrevem o dia a dia oficial da mandatária; ora minimizam absolutamente tudo o que estava ocorrendo em redor de seu governo.
Dessa maneira, a principal crise do dito "Presidencialismo de Coalizão" contemporâneo não só não é explicada com rigor intelectual como não se vê qualquer tentativa do autor de pôr sua tese na prova dos testes dos fatos, chegando à audaciosa; para não dizer indolente, conclusão de que "os fatos serão melhor explicados no futuro" e reduzindo assim os anos de 2014 a 2019 a uma mera coleção pictórica de frases óbvias como (sic), a "crise política estava insustentável", omitindo não só as razões e interesses para esse acontecimento; mas também o contexto institucional do país.
Logo, não poupo à obra de Sérgio Abranches os louros de sua primeira metade: onde o autor é sintético, didático e profundamente perspicaz na análise social de um país politicamente disforme e economicamente atrasado. Da mesma sorte não poupo a sua segunda metade de suas características mais claras: narrativamente pobre, presumida e incompreensivelmente ignorante e excessivamente cheia de histórias esquecíveis e ordinárias.
O livro; se o pudesse definir em uma frase, defini-lo-ia assim: a ideia e sua origem é excelente, mas sua execução tardia é um desastre sem redenção.