Vic 12/01/2022Um romance enigmático, insano, claustrofóbico e inquietanteO romance "Crônica do Pássaro de Corda" de Haruki Murakami é ambientado no Japão, mais especificamente em Tóquio, durante os anos 80, gravitando em torno de Toru Okada, um homem com cerca de trinta anos, casado com a reservada Kumiko em meio a uma rotina banal. A ordem de seu cotidiano é quebrada quando o gato do casal some, o que desencadeia uma série de eventos estranhos, enigmáticos e insanos, com personagens ainda mais excêntricos e improváveis.
A obra é repleta de elementos do realismo fantástico, onde fantasia e realidade estão tão entrelaçadas que a fronteira entre uma e outra é muito turva, como se uma fosse extensão da outra, um reflexo, cuja ordem é sempre invertida: o que é real parece irreal, o que é sonho é mais tangível.
Há uma série de mistérios, metáforas e discussões filosóficas, tornando a trama intrigante e fascinante, transmitindo um magnetismo incrível que atrai e sorve a atenção do leitor, conduzindo-o em uma espiral insana constituída por um mosaico de histórias aparentemente desconexas, mas que são costuradas pela linha enviesada do destino, que mesmo com eventos improváveis, a lógica da narrativa permanece intacta.
Ao meu ver, Murakami transmite em sua obra, como um todo, o cerne do "ens?", o círculo, uma prática oriental da tradição zen, que é a iluminação por meio de um processo que no ocidente chamamos de catarse, cujo o sofrer resulta no florescer de virtudes. O protagonista, Toru Okada, é retratado inicialmente como um homem submergido na letargia do cotidiano, estagnado no tempo, imerso no automático, que metaforicamente só percebe as rachaduras e fendas depois que o templo converteu-se em ruína. Ele passa por um longo processo, guiado por personagens atípicos e acontecimentos surreais, ele é guiado para as profundezas, para os meandros abandonados de si mesmo, se depara com seu próprio desmoronamento para reencontrar-se, uma busca catártica por autoconhecimento.
É um deleite acompanhar o desenvolvimento desse personagem, sua jornada é habitada por uma série de duplos (dopplegängers), simbolismos, metáforas, ciclos que se conectam e relações especulares, por meio de elementos do fantástico e do surrealismo, com uma ótima dose de contexto histórico, abrangendo alguns períodos obscuros do oriente. Como o ens?, Toru passa por um processo que não é baseado na perfeição, é repleto de percalços, erros, desníveis, tensões e sofrimento, mas que muda Okada para sempre, propiciando autoconhecimento e transformando sua relação com os elementos da exterioridade.
Por meio de uma trama não-linear em inúmeras passagens, Murakami aborda em seu romance temas como a liquidez da atualidade, com seus relacionamentos vazios e raquíticas conexões, crise de identidade, autoconhecimento, a ambiguidade da natureza humana e a profunda violência que transpassou o Japão em seu passado durante os conflitos bélicos. O autor consegue transmitir genialmente uma atmosfera claustrofóbica, enigmática e inquietante, que se enquadra perfeitamente no conceito freudiano de estranho familiar, assim como as obras discutidas pelo grande criador da psicanálise em seu ensaio.
É uma obra espetacular que propicia uma experiência marcante, revelando o poder que a literatura tem de remexer em nosso âmago e nos desestabilizar. Recomendadíssima! Sem dúvidas, já é um dos livros da minha vida! Com certeza muitas releituras estão por vir. Se algum dia for adaptada aos cinemas (e aguardarei ansiosamente por esse dia) serei a primeira a comprar os ingressos.