Paula 24/04/2011
JUNG, UM CONVITE
O homem e seus símbolos poderia se chamar Um convite a si mesmo, e, ainda assim, passaria batido às vistas dos que procuram auto-ajuda nas estantes de livraria, pois, apesar da didática com que foi escrito, não se trata de uma leitura tão fácil. Em quase 500 páginas, as principais teorias junguianas são cuidadosamente comentadas e ilustradas através de imagens e relatos oníricos, não sendo, contudo, bastantes. É "apenas" um belo resumo, um preâmbulo diante dos seus muitos livros, escrito e organizado tanto por Jung quanto pelos alunos e amigos mais próximos. E sim, é um primeiro passo para um enorme e fascinante dédalo...
Carl Gustav Jung nasceu na Suíça, especializou-se em Psiquiatria e, no início do século XX conheceu Sigmund Freud. Dessa parceria surgiu não apenas uma forte amizade, mas também um grande laço intelectual e científico. Mais tarde, no entanto, por incompatibilidades teóricas, ele rompeu com a Psicanálise freudiana e formulou as suas próprias idéias no que veio a chamar de Psicologia Analítica. A relação com o inconsciente através dos sonhos é algo presente e substancial em seu trabalho, o que torna bem curioso o fato de O homem e seus símbolos ter sido pensado a partir de um sonho do próprio Jung.
Depois de muito recusar o convite de John Freeman para a realização de um trabalho destinado aos leigos, Jung sonhou que estava discursando sobre suas teorias para milhares de pessoas simples, não-acadêmicas, e elas o olhavam fixamente, como se mostrassem entendidas de tudo o que ali estava sendo dito. A partir de então ele resolveu aceitar o convite do jornalista citado acima, dedicando-se, desta forma, até o fim da vida, àquele que viria a ser o seu último (1961) e mais conhecido livro.
A obra está dividida em cinco capítulos (mais Conclusão), dentre os quais, o primeiro e maior, foi escrito pelo próprio doutor Jung. Nele o pai da Psicologia Analítica desenrola de forma brilhante como surgiu a necessidade de uma ciência própria, suas discordâncias com Freud, a função dos sonhos e como se dá a análise deles, dentre outros temas como tipos psicológicos, arquétipos, alma humana, símbolos e dissociação. Jung afirma que os nossos sonhos são a principal forma de contato com o inconsciente, e que este não deve jamais ser rejeitado, com tanto que, no final das contas, todo o veredicto daquilo que realmente somos seja dado pelo próprio e iluminado consciente humano.
O segundo capítulo foi escrito por Joseph L. Henderson, um dos mais conhecidos e respeitados junguianos dos Estados Unidos. No meio de exemplos mitológicos e contos de fadas, o autor faz um link entre alguns símbolos clássicos e o homem moderno. Há aí uma análise muito esclarecedora do famoso conto feérico A Bela e a Fera, considerações sobre a hybris, e a explicação dos quatro ciclos distintos existentes na evolução do mito do herói (Trickster, Hare, Red Horn e Twin), constatados pelo dr. Paul Radin em 1948.
O processo de individuação foi como intitularam um dos capítulos mais interessantes, na minha opinião, escrito por Marie-Louise von Franz, que explica (talvez um tanto brevemente) os significados e funções da anima, animus, sombra e self, termos criados e utilizados por Jung no desenrolar de suas pesquisas e trabalhos. Há aqui uma passagem muito interessante, onde M-L conta a história dos índios naskapi e suas relações com o self ("O Grande Homem", ou Mista'peo, como eles chamavam), ilustrando assim como se dá a convivência de um ser humano com o que há de mais profundo de si mesmo... Logo no primeiro sub-capítulo (A configuração do crescimento psíquico) existe um desenho bastante simples que demonstra o que seria o self, a consciência e o ego, tal que nos faz refletir de forma similar sobre a constituição grega do homem (soma-psique-nous).
Mas, como foi dito mais acima, os autores não se demoram ao explanar tais teorias e diversas vezes utilizam casos clínicos e/ou imagens para ilustrar o que querem dizer, fato que, contudo, não faz do livro uma publicação dispensável ou rasa demais; pelo contrário, é realmente uma isca muito bem preparada aos bons e curiosos leitores.
No penúltimo capítulo, Aniela Jaffé (que é, inclusive, biógrafa de Jung) nos revela o simbolismo existente nas artes plásticas modernas, como e por qual motivo se deu a ruptura do classicismo e a busca por novas manifestações artísticas (ou seria melhor dizer anímicas?) e nos faz refletir sobre a humanidade existente nos desenhos primitivos em cavernas, a fascinante mescla de imagens e sensações do Surrealismo, e mesmo sobre as estruturas geométricas pintadas e esculpidas por alguns artistas. Aniela também chama especial atenção (mais uma vez, pois esse assunto perpassa todo o livro) para o significado das mandalas: "Toda construção, religiosa ou secular, baseada no plano de uma mandala é uma projeção da imagem arquetípica do interior do inconsciente humano sobre o mundo exterior" (página 328).
Já Jolande Jacobi reserva o seu texto para demonstrar a progressão de uma análise individual feita com um de seus pacientes, que ela chamou de Henry. Neste capítulo podemos acompanhar e penetrar nos sonhos deste rapaz, entendendo como se pode desenvolver uma análise de sucesso dentro da Psicologia Analítica.
A conclusão também ficou por conta de Marie-Louise von Franz, talvez a mais íntima e confidente amiga de Jung. Aqui, a autora pincela tanto a influência do pensamento junguiano dentro de outras áreas científicas (a Microfísica e a Biologia, por exemplo) como a importância destas ciências dentro das pesquisas de Jung, além de nos revelar sucintamente a complexidade de conceitos como sincronicidade, energia e significado. Marie-Louise nos explica que muitas teorias junguianas são, tal qual ele mesmo confirmara antes, apenas pontos de partida para o desenvolvimento de um pensamento psicológico urgente, necessário, diante de tantas catástrofes mundiais e, sobretudo, individuais que existem.
Essa urgência parece mesmo sobreviver há muitos séculos, talvez bem antes de ter sido escrito na entrada do Oráculo de Delfos: Conhece-te a ti mesmo.... E é pelo ser humano estar cada vez mais afastado desse si mesmo que criaturas como Carl Gustav Jung dedicam (ou dedicaram) grande parte de suas vidas desenvolvendo teorias e idéias belíssimas para serem depois aperfeiçoadas e, principalmente, vividas por todos nós.