Gisele @abducaoliteraria 03/08/2018Longe de ser uma história somente para criançasQuando terminei de ler este livro, após quase um mês de tê-lo iniciado, me senti um pouco traída por Richard Adams. Para quem não conhece, Em Busca de Watership Down é um clássico da fantasia infanto-juvenil da década de 70, que fez e ainda faz muito sucesso. Se você ainda não viu, fiz um post recentemente no blog com algumas curiosidades, aprofundando a introdução do autor que há no livro, que por sinal, é muito interessante.
Vocês devem estar se perguntando por que eu me senti traída pelo autor. Veja bem, Richard Adams criou sua história de forma despretensiosa, com a intenção de entreter suas filhas durante uma viagem longa. Segundo ele, essa é apenas uma história sobre coelhos. Uma história para crianças, apesar de escrita com uma linguagem mais adulta. Richard Adams mentiu. Em Busca de Watership Down pode muito bem divertir as crianças, mas ela também é uma história profunda, que pode ser lida por pessoas de todas as idades.
Em Busca de Watership Down, em sua superfície, apresenta uma aventura sobre coelhos corajosos que decidem se arriscar a procura de algo melhor. Quinto tem dons premonitórios. Ele é chamado assim por ser pequeno e o último de sua ninhada; o quinto. Quando ele é tomado por pressentimentos ruins relacionados ao lugar onde vive, sua primeira atitude é conversar com seu irmão, Avelã. Juntos, eles tentam convencer o chefe do viveiro a deixarem o lugar, algo completamente fora do comum. Quinto continua perturbado e inquieto depois de ser ignorado pelo chefe, então ele e Avelã decidem agir por conta própria e buscar um lugar seguro para viver, acompanhados de outros coelhos que também se sentiram comovidos pelas visões do pequenino.
O primeiro detalhe que me chamou a atenção foi o quão cuidadoso Richard Adams tentou ser ao criar sua história, mesmo se tratando de uma literatura fantástica. É nítido que ele pesquisou bastante sobre a vida dos coelhos, optando por apresentar algo bem próximo da realidade, explorando as características desses animais com muita veracidade. O autor cria até mesmo algumas palavras próprias para o vocabulário deles, como silflay, o simples ato de ir à superfície comer grama. Com isso, passamos a enxergar a história pela perspectiva dos coelhos com mais facilidade, então percebemos o quão ousada, complexa e longa essa jornada será. A história se mostra tão crível que eu fiquei um bom tempo imaginando se algo assim realmente poderia acontecer. Creio que sim, rs.
Os personagens demonstram uma evolução muito interessante ao longo da história. O desenvolvimento acontece de forma tênue, sempre depois de uma situação de risco ou aprendizado. Diante do cenário mais desafiador, cada coelho vai mostrando o seu valor - o mais forte, o mais inteligente, o mais corajoso - e aos poucos vamos nos envolvendo e torcendo por eles. O maior exemplo de evolução se vê através de Avelã, que se vê forçado a assumir a liderança do pequeno grupo revolucionário. A princípio, Avelã se esforça para guiar seus amigos e fazer a coisa certa, mas com o tempo sua postura de líder se mostra natural. O meu personagem favorito e também o que demonstra o desenvolvimento mais surpreendente é Topete. Se você está começando essa história, tenho certeza que se sentirá espantado com essa afirmação, mas vai por mim: o coelho imaturo e birrento do início da história, aquele que tinha tudo para ser uma bela pedra no sapato irá te surpreender bastante.
Ainda falando sobre personagens, não posso deixar de registrar a minha tristeza pela ausência de personagens femininas. Não que elas não existem, mas estão presentes apenas no quesito reprodução, para conceber filhotes. Acredito que o autor tenha tentado retratar algo bem próximo da realidade dos coelhos, mas a partir do momento que estamos falando de uma ficção, acho que caberia muito bem algumas personagens femininas dentro da aventura principal. Talvez tenha sido por causa disso que eu demorei para me identificar com os demais personagens.
Apesar de possuir 464 páginas, levei quase um mês para concluir o livro. Ele exibe uma narrativa bastante descritiva e um pouco lenta, o que faz com que você absorva todas as situações da história com muito mais profundidade. E isso é absolutamente necessário, porque a história apresenta tanto críticas sutis, quanto outras mais escrachadas que envolvem coisas como fascismo e opressão. Quando você as percebe fica chocado pela forma com que o autor decidiu inserir tudo isso dentro da trama.
Além das críticas, a história também passa algumas mensagens muito claras, principalmente ligadas à natureza. Uma das mensagens mais significativas é quando o autor deixa claro que a essência cruel dos homens afeta diretamente a vida dos animais a partir do momento que ele decide matar por matar; apenas porque esses bichinhos cruzam o seu caminho. Sentimos isso na pele principalmente quando essa realidade afeta os coelhos que nós aprendemos a torcer tanto para tudo dar certo. Para eles encontrarem um lugar seguro, longe de ameaças, longe dos humanos.
"Ame os animais. Deus deu a eles os rudimentos do raciocínio e da alegria imperturbável. Não os perturbe, não os incomode, não os prive de sua felicidade, não trabalhe contra a vontade de Deus. - Dostoiévsky, Os Irmãos Karamázov".
O livro é recheado de momentos de aventura, tensão, ação (de tirar o fôlego) e também situações divertidas. Durante a narrativa temos algumas historinhas dentro da própria história sobre lendas e mitologias que contribuem com o vasto universo criado pelo autor. O livro poderia sim ser um pouco mais enxuto, porque tiveram momentos em que a trama se arrastou um pouco. Mas não desanimem, a história realmente vale a pena.
Depois de tudo isso, acredito que agora vocês entendem o porquê me senti traída por Richard Adams. Sua história é muito mais do que uma fábula para crianças e uma aventura sobre coelhos fofinhos. Ela pode ser lida por pessoas de qualquer idade, porque ela trará uma experiência e um entendimento diferente dependendo do momento em que você a ler, e esse é o poder de um grande clássico.
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