Manuel Gimo 22/07/2019
Amor vs Tradição
AUTORA: Paulina Chiziane
TÍTULO: Balada de Amor ao Vento
LOCAL DA PUBLICAÇÃO: Lisboa
EDITORA: Editorial Caminho
EDIÇÃO: 2ª. ed.
ANO DA PUBLICAÇÃO: 2003
PÁGINAS: 113
FORMATO DO LIVRO: eBook (EPUB)
SINOPSE:
Sarnau e Mwando protagonizam esta estória de amor. Da juventude à idade madura, com eles percorremos os dias, os meses, os anos, os encontros e os desencontros, a dolorosa separação, o desespero, o sofrimento e a alegria, as lágrimas e os sorrisos. Atravessamos cidades e aldeias, convivemos com a tradição, aprendemos os costumes e os hábitos de um povo. Sarnau vai crescendo e amadurecendo sob o nosso olhar. Impossível não admirar a coragem, a determinação, o orgulho e a humildade, a firmeza e o carácter desta mulher. E a sua fidelidade, mesmo nas circunstâncias mais adversas, ao amor. Ao seu primeiro e único amor. Mas haverá um reencontro? Serão Sarnau e Mwando capazes de apagar um tão longo e trágico passado? Existirá ainda para eles um futuro a partilhar? «Tu foste para mim vida, angústia, pesadelo. Cantei para ti baladas de amor ao vento. Eras para mim o mar e eu o teu sal. No abismo,não encontrei a tua mão.» Sarnau, tu que assim falaste a Mwando, chegarás a encontrar um pouco de paz? Voltarás a conseguir esboçar no rosto o teu lindo sorriso, há muito perdido no tempo? Abrirás enfim os braços para neles abrigares o amor? Ouvirás a melodia que o vento espalha no universo?
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«Tudo é belo quando as pessoas se amam.» (p. 16)
Livro de estreia da Paulina Chiziane, a contadora de histórias. Publicado originalmente pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) em 1990, esta edição sai sob a chancela da Editorial Caminho, de Portugal.
“Balada de Amor ao Vento” é também o primeiro romance de autoria feminina em Moçambique.
Há já bastante tempo que queria devorar vorazmente esta obra, e eis que me surgiu a oportunidade no momento oportuno, e fi-lo com o maior prazer.
«— Sarnau, o lar é um pilão e a mulher o cereal. Como o milho serás amassada, triturada, torturada, para fazer a felicidade da família. Como o milho suporta tudo, pois esse é o preço da tua honra.» (p. 32)
Situado no Moçambique colonial, “Balada de Amor ao Vento” leva-nos a Mambone, “saudosa terra residente nas margens do rio Save” (p. 6), no norte da Província de Inhambane, para conhecermos Sarnau e Mwando. Um casal, à primeira vista, lindo mas improvável. O destino, como teria de ser, é-lhes cruel e entrega-lhes um futuro incerto, repleto de surpresas amargas: desilusões, decepções e loucura.
Este é o tipo de história de amor que a primeira já sabemos como começa e como termina. Afinal, já conhecemos esta história, já ouvimos-la (ou vimos-la) inúmeras vezes. Todavia, aqui temos inovação. Mais que isso, o que perpassa toda a narrativa é o ineditismo, embalado em um tom lírico singular. A maneira que Chiziane acopla os elementos da tradição dentro da narrativa é incrivelmente espetacular, é um talento abismal, com certeza.
«Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra.» (p. 6)
A narração é irregular (algo que viria a ser levado aos extremos em 1993 em “Ventos do Apocalipse“), alternando entre a protagonista Sarnau e narrador heterodigiético para Mwando.
Sarnau é a protagonista-narradora que nos conta sobre a sua vida amorosa pelas terras de Mambone. Outrora Rainha de Mambone (primeira mulher do Rei Nguila) mas o amor por outro homem, sua paixão da adolescência, o Mwando, lhe leva a trilhar caminhos espinhosos que que culminam em miséria e pobreza extrema. Concomitantemente, Mwando, o padre que não chegou a ser, é o nosso protagonista masculino. Jovem exemplar, um homem azarento e amargurado. Apaixonado por Sarnau, mas obrigado a casar-se com outra. E mais, um monogâmico numa sociedade poligâmica tem que ser “eliminado, não presta” (p. 47), pois é um “galo que não consegue galar todas as frangas” (ibid). A vida parece nunca lhe sorrir no amor.
Estas duas almas perenemente condenadas e humanamente falhas cantam baladas de amor aos ventos de Mambone até aos de Mafalala, bairro paupérrimo da capital Lourenço Marques.
«— Sarnau, sangue do meu sangue, nem todas as lágrimas são tristezas, nem todos os sorrisos são alegrias. Os teus antepassados fremiam de dor, mas cantavam belas canções quando partiam para a escravatura. Os mortos vestem-se de gala quando vão a enterrar. Os vivos semeiam jardins nos túmulos tal como hoje te oferecemos flores. Os condenados sorriem quando caminham para o cadafalso, mas choram quando são libertados. Sarnau, minha Sarnau, partes agora para a escravatura.» (p. 33)
Paulina Chiziane conta uma história tão linda, tão triste, e ao mesmo tão verossímil, que é de deixar o leitor desamparado, triste, maravilhado e com, usando palavras da Sarnau aquando do seu lobolo, o “rosto com lágrimas de emoção” (p. 27). Como não poderia ser, o protagonismo feminino impera (como é característico nos romances de Chiziane). Está presente, de igual modo, o confronto entre a tradição (assaz machista) e o empoderamento feminino. Temas estes que voltariam a ser abordados nos óptimos “Niketche: Uma História de Poligamia¹ (2004)” e “O Alegre Canto da Perdiz² (2008)”. E como nestes dois livros, o final não poderia ser mais magnífico: a libertação da mulher das amarras sociais secularmente impostas por mãos masculinas.
«Para quê recordar o passado se o presente está presente e o futuro é uma esperança? Espero que me acreditem, mas o passado é que faz o presente, e o presente o futuro.» (p. 6)
«Não há nada mais belo neste mundo que um lar para cada criança.» (p. 104)
OUTRAS CITAÇÕES:
«Teus olhos têm o encanto de um poema divino. Que pena, não saberes ler. Escrever-te-ia uma carta linda, longa. Dedicar-te-ia todas as palavras que ao teu lado não consigo pronunciar quando o teu sorriso estrangula a melodia da minha garganta. Escrever-te-ia um poema de sumo de ananás e batata-doce com aroma de canho. Levar-te-ia nos meus versos a vaguear no universo do sonho transportados na concha do girassol. Sarnau, tu ajudaste-me a nascer, pois se não tivesses começado, nunca teria a coragem de dizer qualquer coisa sobre o meu coração. Semeaste em mim o perfume das acácias. Escuto a música dos galos à distância. Estou no abismo da solidão, no gólgota da distância, o domingo está longe para...» (p. 14)
«O poder é como o vinho. No princípio confunde, transtorna, quase que amarga; pouco depois agrada, e, no fim, embriaga.» (p. 35)
«Só come quem trabalha, ensina a sabedoria popular.» (p. 43)
«Homem que é homem deve saber resistir às vicissitudes da vida, pois todos os seres vivos têm as suas amarguras. As árvores sofrem da chacina dos homens, mas nunca deixaram de viver. As ervas sofrem do pisoteio desordenado de todos os bichos da selva, mas nunca se queixaram. Os animais mais fracos são o pasto dos mais fortes, mas nunca deixaram de se multiplicar. Os pássaros são aprisionados sem razão e até os montes sofrem das violentas bofetadas do vento.» (p. 50)
«O escravo liberto torna-se tirano.» (p. 89)
«O homem alcança as alturas cavalgando nos ombros dos outros.» (p. 89)
«A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr do sol a situação pode inverter-se.» (p. 89)
«A força de um mede-se pela fraqueza do outro.» (pp. 88 - 90)
«O homem julga-se senhor do mundo. Onde ele põe a mão, tudo é devastado sem razão.» (p. 94)
AVALIAÇÃO: 10/10
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Review by Manuel Gimo
NOTAS DE RODAPÉ:
¹ Para ler a resenha de Niketche: Uma História de Poligamia clique aqui:
² Para ler a resenha de O Alegre Canto da Perdiz clique aqui:
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