jota 15/08/2014Exasperação...Tudo que é humano é pouco estranho para Thomas Bernhard. Desse modo, O Náufrago é um romance mas ao mesmo tempo se parece também com uma obra de filosofia - embora sua leitura não seja tão árdua como se poderia supor. Sintomaticamente, o narrador do livro é chamado de “filósofo” (personagem sem nome), não o “naúfrago” (o músico suicida Wertheimer) e tampouco o pianista canadense Glenn Gould (1932-1982), os três personagens principais do livro.
Quem leu o volumoso Origem (eu li recentemente e penso que o livro não é apenas um dos melhores que li em 2014 mas um dos melhores que li na vida) vai ver que vários temas presentes nos relatos autobiográficos de Bernhard estão de volta aqui e literatura e vida se confundem (ele era um grande apreciador de música) com maestria nesse livro curto (cerca de 160 páginas na edição de 2006 e 235 páginas na primeira edição brasileira, de bolso, de 1996).
A história dos três é contada num único parágrafo que, obviamente, se inicia na primeira página e só termina na última (outra característica da escrita de Bernhard) e também é marcada pela raiva (o narrador diz odiar, entre tantas coisas, Viena, Salzburgo, toda a Áustria, enfim, o inferno na terra, como o próprio autor costumava dizer), pelo niilismo e pela repetição de palavras - a estrela aqui, repetida à exaustão, é “pensei”.
Pois eu sempre pensei que Bernhard - um dos representantes daquilo que alguns críticos chamam de “escola do desespero” – tivesse se suicidado, porém depois, melhor informado, soube que ele morreu aos 58 anos de um ataque do coração. Mas lendo suas obras eu não estranharia se ele tivesse posto fim a sua vida com as próprias mãos, como alguns de seus personagens.
Li O Náufrago na edição de 1996, que tem a apresentação do escritor Bernardo Carvalho (dos ótimos Nove Noites e Mongólia), que reconhece o escritor austríaco como uma de suas influências literárias. Achei mais interessante transcrever Carvalho do que escrever uma resenha própria, que certamente seria cheia de platitudes, mais parecida com um resumo, isso sim. Vamos lá, então:
“Três talentosos estudantes de piano se encontram num curso do Mozarteum de Salzburgo durante o pós-guerra. Um deles é o canadense Glenn Gould, que será consagrado em seguida, com a sua interpretação das Variações Goldberg, de Bach, como um dos maiores gênios do piano deste século. E será justamente ao ouvirem essa interpretação pela primeira vez, em 1953, que os outros dois colegas – mas sobretudo o “náufrago” do título – terão suas vidas aniquiladas.
“Este livro, uma obra-prima da literatura contemporânea, é a narração convulsiva e exasperada do último sobrevivente dos três, que volta à Áustria, vinte e oito anos depois – após a “morte natural” do próprio Gould aos 51 anos – para o enterro de outro amigo, Wertheimer, o “náufrago”, que acaba de se enforcar na Suíça. É a rememoração obsessiva rumo ao mistério desse momento fundamental, os primeiros acordes das Variações Goldberg por Glenn Gould, em que a semente do suicídio foi plantada na “alma” do protagonista ao perceber que jamais poderia equiparar-se a tal gênio.
“Assim também, a prosa de Thomas Bernhard produz efeitos ao mesmo tempo devastadores e jubilosos, por alargar, como um trator, os limites da própria literatura. O texto de Bernhard, com seu humor exasperado, uma espécie de júbilo da devastação contra tudo e todos, não deixa pedra sobre pedra, ataca a humanidade em todas as suas hipocrisias, cinismos e mesquinharias, abrindo o caminho para uma nova percepção e possibilidade da literatura a partir das cinzas e dos destroços. A “extinção” torna-se assim um renascimento através da gargalhada. E a raiva e a misantropia passam a ser um fator positivo ao mesmo tempo contra o que há de podre e a favor de uma humanidade mais verdadeira e íntegra.” (Bernardo Carvalho).
Lido em 14 e 15/08/2014.