Ubiratan 26/12/2023
Romance bonito mas problemático
Como vive, e o que sente um homem que, por dever do sacerdócio, é celibatário? É esse o ponto de partida deste romance do português Alexandre Herculano. E acho corajoso que o autor tenha se proposto a responder essa pergunta criando um personagem ambientado, não na sua própria época, o século XIX, mas no século VIII, onde pouco se sabe da vida privada das pessoas.
O protagonista dessa história é o nobre Eurico, do povo visigodo (que ocupou com seu império a região que compreende hoje Espanha e Portugal).
Após uma desilusão amorosa, e desenganado da vida, Eurico renuncia ao mundo e vai viver no sacerdócio.
Como Alexandre Herculano foi também historiador, quis mesclar nesse livro a ficção a fatos e personagens históricos. Então a vida de Eurico se confundirá com eventos da história da Europa no século VIII, entre eles a própria invasão árabe à península ibérica, e as batalhas dela decorrentes (das quais Eurico se tornará um herói).
Há momentos de prosa poética: são aqueles em que o autor deu espaço aos escritos do protagonista, porque era este também um poeta. Usando das próprias palavras do narrador, "Eurico era uma dessas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las".
Pra quem procura alguma coisa entre lirismo, devoção e angústia, os capítulos que dão voz a Eurico serão especiais. Há neles uma poderosa defesa da noite, das sombras, e da imaginação:
"Por que te havia eu de amar, ó sol, se tu és o inimigo dos sonhos do imaginar; se tu nos chamas à realidade, e a realidade é tão triste? Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e às horas mortas do alto silêncio, a fantasia do homem é mais ardente e robusta".
Saio deste livro visualizando um pouco melhor como os livros literários também se fazem de instrumento de propagação de ideologias e de preconceitos, porque este livro também os propaga. "Eurico, o presbítero" está, quer queira ou não, a serviço da máquina colonial ao pintar de forma animalesca, desumanizada, os árabes, com seu "sensualismo" sempre "brutal", em oposição ao povo cristão, pretensamente racional, civilizado e, claro, superior por mandato divino.