Pedro1942 01/07/2022
Os contemporâneos acreditam em seus mitos?
Retirada da minha avaliação final de historiografia
?Tudo pode ser política, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer cousa de nada, pode valer muito.?
VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? São Paulo, Editora Unesp, 2013 [Francês, 1983]
Paul Marie Veyne é um historiador e arqueólogo francês especialista em história da Roma antiga. Nascido no dia 13 de junho de 1930, em Aix-en-Provence, costuma dizer que seu interesse pela arqueologia e história veio ao acaso, quando, aos oito anos de idade, descobriu uma ânfora celta. Veyne não atribui seu interesse pela Grécia e Roma Antiga a nenhum outro motivo além desse ocorrido aleatório em sua infância. Estudou na Escola Normal Superior de Paris, onde formou-se, e em 1957 tornou-se professor na Universidade de Provença. Em 1975, entrou para o Collège de France, onde ocupou a cadeira da História de Roma de 1975 a 1998, e em 1999 foi homenageado como professor honorário. Atualmente, aposentado, vive em Bédoin, Vaucluse, mas continua escrevendo mesmo em sua idade avançada.
O trabalho de Paul Veyne é muito interligado à epistemologia, seus ensaios costumam debater-se em volta dos temas das mentalidades, crenças e verdades e trazer essas questões para a produção historiográfica. Uma outra característica importante de seus escritos é a multidisciplinaridade em seus métodos de investigação, que vão desde a filosofia à sociologia, esmiuçando as culturas cujos temas debatem. Todas essas características estão presentes em seu ensaio Os gregos acreditavam em seus mitos? de 1983, lançado numa época em que a produção histórica estava sendo seriamente questionada através do movimento do ?giro linguístico", que criticava o saber objetivo através de abordagens econômicas e sociais, pondo em foco a utilização da cultura e da linguagem em pesquisas. Veyne em si, está mais alinhado com a versão mais radical dessa abordagem, cujas formas de culturalismo chegavam a relativizar a própria produção histórica, negando seu teor científico e determinando a história mais próxima da produção literária do que uma representação da realidade. Em seu ensaio, Como se escreve a história de 1970, um clássico da historiografia, essas teorias historiográficas são definidas e servem de base para o que será analisado nesta resenha.
O título do livro, ?Os gregos acreditavam em seus mitos??, é muito chamativo por si próprio, e foi o que me fez ter a vontade de lê-lo, mas engana-se quem acha que o conteúdo do livro é apenas uma análise das crenças gregas antigas, porque como o próprio autor comenta no livro:
?O propósito deste livro era muito simples. Apenas pela leitura do título, alguém com um mínimo de cultura histórica já teria respondido: ?Mas é claro que eles acreditavam nos mitos deles!?. Nós quisemos simplesmente fazer de maneira que o que era evidente por ?eles? seja também por nós e extrair as implicações dessa verdade primeira.?
Além de analisar o credo dos gregos em seus mitos, Veyne apresenta uma de suas principais teorias através destas implicações retiradas do estudo, que são os programas de verdade. Então, o que achávamos que iria ser apenas um relato histórico sobre peculiaridades mitológicas da antiguidade, acaba tornando-se um ensaio que ultrapassa as barreiras da disciplina e nos faz questionar sobre nossas próprias concepções na atualidade.
Segundo Veyne, os gregos antigos oscilaram em sua forma de relacionar com seus mitos de duas formas. A primeira, enxergando-os como uma realidade completamente exterior ao mundo cotidiano, criando um universo mitológico incompatível com o que viviam. Posteriormente, esse paradigma mudou, e os mitos começaram a ser vistos como um apanhado de mentiras, ilusões, enigmas e crendices populares, entretanto ainda possuíam algum fundo de verdade que poderia ser descoberto através da investigação. Veyne compara a primeira forma mitológica com a literatura merovíngia sobre santos e mártires locais ao dizer que:
?Para o povo dos fiéis, as vidas de mártires, cheias de maravilhas, situavam-se num passado sem idade, do qual se sabia apenas que era anterior, exterior e heterogêneo ao tempo atual; era ?o tempo dos pagãos?. Ocorria o mesmo com os mitos gregos: passavam-se ?antes?, na época das gerações heróicas, quando os deuses ainda se misturavam aos seres humanos. O tempo e o espaço da mitologia eram secretamente heterogêneos aos nossos?
Além desta heterogeneidade, estes tempo remotos possuíam uma aura de nobreza, como um passado muito belo, mais do que qualquer lembrança nostálgica do grego da época. O principal representante dessa modalidade de crença, para Veyne, é o poeta Píndaro, que através de seus epinícios, narra mitos para o atleta vencedor dos jogos olímpicos de sua época.
Este paradigma muda a partir da época dos historiadores gregos, que começaram a aplicar o método historiográfico de sua época nesses mitos e tentar depurar a verdade no meio das fabulações mitológicas. Ocorre uma transformação na mentalidade grega, mas ao contrário do senso comum, não foi uma progressão em direção a razão e sim porque o campo do saber foi profundamente alterado graças ao surgimento de novos poderes de informação, como a investigação histórica e a física especulativa, que agora faziam concorrência ao mito trazendo a alternativa do verdadeiro e do falso. Os representantes desta modalidade são Heródoto, Pausânias, Tucídides e Hecateu, mas Pausânias recebe uma atenção maior no livro, chegando até a ganhar um capítulo próprio.
A questão geral deste livro dá-se através dessas análises sobre crenças, que para Veyne, também são análises sobre a verdade e fazem parte da sua ideia sobre programas de verdades. Para compreender a mesma, precisamos partir do fato de que, para Paul Veyne, a verdade é um outro nome para crença, e por este motivo, está submetida a variações conforme estudamos diferentes épocas, culturas e sociedades. Devido a esta pluralidade, as crenças não podem ser encaixadas em qualquer modelo trans-histórico e eterno. Cada manifestação própria é definida pelo historiador como esses programas de verdades. Estes programas mudam conforme as culturas ou períodos históricos analisados, e junto deles também mudam as definições de verdades. Portanto, qualquer crença que é considerada verdade, por mais que tenha diversos métodos racionais de comprovação, em uma configuração social diferente pode ser considerada falsa. Sendo assim, o historiador conclui que não existe uma verdade geral, somente modalidades de crenças diferentes. Um exemplo fora do cenário da antiguidade pode ser estabelecido baseado no artigo de Douglas Marcelino sobre as manifestações de 1968, onde o mesmo analisa as interpretações de dois intelectuais, Michel de Certeau e Cornelius Castoriadis, que possuíam pensamentos bastante divergentes sobre o evento em que os dois estiveram presentes. Através disto podemos afirmar, baseados na ideia de Veyne, como as crenças que possuímos podem afetar nossa percepção, neste caso, do mesmo acontecimento.
Segundo Leonardo Dantas, em sua dissertação de mestrado sobre Paul Veyne e Os gregos acreditavam em seus mitos?, as principais influências do historiador sobre a sua concepção de verdades constituem-se do trabalho de Michel Foucault e as ideias do cepticismo antigo de Pirro.O primeiro foi um filósofo francês e também adepto da epistemologia, conhecido por suas teorias que relacionam conhecimento e poder em sua utilização para o controle social por meio de instituições. O segundo foi um filósofo grego, considerado o primeiro filósofo cético e fundador da escola do pirronismo. Veyne era um amigo pessoal de Foucault, e a prova da influência do filósofo vem do fato que o historiador escreveu o ensaio Foucault revoluciona a história em 1978, e em 2008 revisou o mesmo e publicou o livro Foucault: Seu pensamento, sua história, que é uma mistura de homenagem póstuma e defesa de suas ideias. E são nestes trabalhos que Paul Veyne demonstra essa ?revolução?, que consiste na análise historiográfica das práticas ao, e através delas chegar a definição do objeto; basicamente o contrário do que era feito na produção historiográfica, que tinha o objeto como ponto de partida da análise. Agora em relação ao cepticismo pirrônico, também promove o questionamento da verdade e utiliza da oposição das mesmas para no final perceber que nenhuma delas é mais crível que a outra, o que pode ser análogo ao que Veyne fez em seu livro ao comparar os diferentes programas de verdade para no final chegar à conclusão que nenhuma é mais verdadeira comparativamente.
Este livro é uma leitura muito intrigante, porque te faz questionar suas próprias verdades e rever as convicções que considerava certas. Através de uma premissa atraente, te leva numa jornada histórica, filosófica e até psicológica sobre a história das mentalidades. Mas mesmo conseguindo entender a premissa dos programas de verdade, a afirmação de não existirem verdades, de que a história não consegue retratar a realidade porque não há como reivindicar o verdadeiro, são questões que me deixam um pouco pertubado, principalmente como estudante de história, pois atingem o cerne da minha futura profissão. Não dá pra negar, assim como no artigo Disputas historiográficas acerca do Nazismo e do Holoccausto, que essas afirmações abrem brecha para o negacionismo e o revisionismo histórico, mas também fazem reavaliar os métodos em que são realizadas as pesquisas históricas e a sua compreensão da realidade. No final, foi uma ótima leitura que me tirou da zona de conforto e fez enxergar a minha disciplina fora das amarras de si mesma e que com certeza definiria como essencial para a historiografia.