Amanda.Gabriel 06/08/2019
Pequeno, mas bom para iniciar crianças na ficção
Como bacharel e literatura, com especialização em ficção científica, para mim é um grande prazer ler livros nacionais deste gênero. E não poderia deixar de fazer minha avaliação, deste livro que é bem pequeno (não se deixe levar pelo número de páginas, o texto é bem curto, li inteiro em um voo entre São Paulo e Maceió). Primeiro vou escrever sobre aspectos gerais do texto, depois vou colocar alguns pontos que considero que poderiam ser melhores e ao fim listarei o que julgo ser os acertos do livro.
O TEXTO
Nos agradecimentos o autor menciona vários escritores de ficção científica, mas o livro traz uma clara homenagem a Michael Crichton, autor de vários best-sellers deste gênero, entre eles dois livros envolvendo dinossauros: Jurassic Park e O Mundo Perdido. A divisão de Realidade Oculta em partes, as epígrafes que acompanham o início de cada parte, o mapa de onde se passa a ação e até as gravuras dos animais são espelho do que se vê em O Mundo Perdido.
Um problema é que Realidade Oculta cruza o limite da homenagem e entra no campo espinhoso do excesso de semelhanças. Mas neste caso o excesso se dá com outro livro de Crichton, Linha do Tempo. A premissa de Realidade Oculta é idêntica à do livro norte-americano. Os protagonistas são um grupo de jovens cientistas (1), eles estudam materiais antigos (2), eles descobrem um material moderno entre os antigos em sua escavação (3), ocorre o sumiço do professor responsável pelos trabalhos (4), eles viajam ao passado, para onde o professor foi (5), reencontram seu professor em meio aos materiais que estudavam (6), passam perigos na tentativa de retornar ao presente (7), as viagens temporais são conduzidas por uma corporação malvadona (8), o líder da corporação é o vilão da história (9).
O livro se desenrola em parágrafos curtos e fica em nós a sensação de que deveriam ser melhor desenvolvidos, o que dá ao texto um aspecto de redação escolar. Há temas interessantes a serem explorados, mas o autor os deixa de lado. O livro também poderia ter uma revisão melhor, pois erros ortográficos estão presentes no texto (um exemplo é a repetição de "matacães").
Uma boa estratégia é a redação de texto voltado para leigos, para a popularização da ciência, mas há trechos em que Realidade Oculta não é didático na linguagem. Termos como assinatura isotópica, neocretáceo, silicatos, caracteres geoquímicos, espeleologia, topografia e similares aparecem como se o leitor leigo soubesse o que significam, e eles passam sem explicação. Na verdade, um dos atrativos para o leitor, quando ele pega um livro do Julio Verne, Isaac Asimov ou Michael Crichton é justamente a capacidade que esses autores tinham de transmitir conceitos científicos complexos de uma forma simples, direta e palatável. Em Realidade Oculta, alguns conceitos científicos são apresentados, mas nunca desenvolvidos, então o leitor descobre que existe um tema interessante de ciência, mas o autor não explora o assunto, ele é sempre mostrado e abruptamente deixado de lado para que a narrativa tenha prosseguimento, algo que desanima o aficionado por ficção científica. Verne, Asimov e Crichton sempre reservariam algumas páginas para cada um desses temas, mostrando o que a ciência já descobriu a respeito deles e ressaltando, em parágrafos longos, até mesmo os aspectos poéticos que os envolvem.
Senti uma falta de ritmo para alternar momentos de ação com cenas emotivas. O Oxalaia destroça personagens em uma página e, para estranheza total do leitor, na página seguinte há um momento sentimental de crítica aos seres humanos, que "devem cultivar o amor e o respeito ao próximo". Na linha seguinte recomeça o corre-corre. Aliás, é lugar-comum colocar a humanidade, em sua totalidade, como vilã e criminosa. E o texto se contradiz no fim, pelo regozijo quando a protagonista concretiza sua vingança contra o vilão.
Realidade Oculta mostra uma sequência de cenas com dinossauros, um tanto desconectadas, sem um enredo envolvente que una esses retratos. Cada cena tem o objetivo claro de mostrar um dinossauro, como em um passeio de zoológico em que o visitante vê uma jaula e segue para a próxima sem que essa sequência seja unida por um fio elaborado.
Livros de ficção científica, por padrão, não dedicam muito de seu texto para aprofundar nos aspectos humanos e emotivos dos personagens. Talvez Julio Verne seja um dos poucos autores que se sai melhor nesse campo. Realidade Oculta não foge à regra e os personagens são unidimensionais, temos a sensação de que o que importa é apenas a narrativa do evento. Muitos deles mal possuem a descrição física. Considerando que trata-se de um diário de uma pessoa que escreve em primeira pessoa, os aspectos emotivos deveriam ser bem mais profundos e explorados. Um exemplo de passagem que poderia ser melhor redigida é o fato da protagonista imediatamente deduzir que voltou no tempo, ao encontrar um bando de dinossauros. Qualquer pessoa sã ficaria confusa ao extremo nessa situação, e, por ser cientista, tentaria encontrar razões mais plausíveis para explicar sua condição, como "eu fui sedada e levada para outro local sem meu conhecimento", "estou perdendo minha lucidez, isso são alucinações" ou "este local é muito estranho, não sei onde estou mas vou tentar descobrir onde vim parar"... ela deveria passar um bom tempo pensando esse tipo de coisa, mas a protagonista imediatamente reconhece e aceita (!) que fez uma viagem involuntária no tempo, justamente a mais irreal da possibilidades. Outro exemplo seria o caso do professor Strauss, que permaneceu quatro meses perdido na floresta pré-histórica, o que seria um prato cheio para que se explorasse os danos psicológicos de alguém submetido a tamanho estresse. A solidão e a exposição recorrente ao perigo provocariam fobias e traumas ótimos de serem explorados pelo autor, mas não foram.
O desdém com a ufologia soou um tanto estranho. Não que eu ache que os "investigadores de discos voadores" estejam no patamar da ciência dita tradicional, mas porque se vê no livro um esforço deliberado e repetitivo de caçoar dos ufólogos. Assistir a isso é meio incômodo, como uma espécie de desvio do foco da narrativa.
PONTOS QUE PODERIAM SER MELHORES
Um dos pontos da propaganda do livro é o fato dele ser cientificamente correto no que diz respeito ao retrato dos dinossauros e outros seres extintos. A escolha das espécies que aparecem na narrativa correspondem ao que foi descoberto nas rochas pré-históricas do Brasil, especialmente da Região Nordeste, onde a história se passa. Eu estudei um pouco o tema e, de fato, alguma relações entre os animais (como quem-se-alimenta-de-quem) têm base na paleontologia. Mas parece que o critério científico se limita a isso. Quase toda a descrição comportamento das espécies é especulação do autor. E há exageros com os quais deve-se tomar cuidado.
Um deles é a abundância de espécies e grandes populações dessas espécies em uma localidade pequena. Não ocorre isso na natureza, os observadores de animais deve andar muito, por vários dias, para ver alguma diversidade. Imaginando a velocidade de deslocamento em mata fechada, nos dias mais curtos do Cretáceo, eu calculo que a distância percorrida pelos personagens (a mesma que é ilustrada no mapa) é bem pequena. A clareira dos Iguanodontes, em linha reta, deve distar cerca de 30 km do oceano. É uma área bastante pequena para abrigar tamanha diversidade, onde dinossauros de grande porte, principalmente carnívoros, aparecem continuamente na selva. Caso houvesse real apego pela cientificidade, a história teria que se passar em uma área muito maior para que a diversidade mostrada fosse possível.
Outra incorreção científica que me chamou a atenção é o excesso de voracidade dos predadores. Eles simplesmente não param de atacar os humanos, inclusive as espécies vão se alternando em ataques sem interrupção. E alguns dinos carnívoros se atacam entre si. O YouTuber Pirula fez um vídeo criticando essa caricatura nos dinossauros do filme Jurassic World, e ele pode ser aplicado a Realidade Oculta. Por exemplo, Michael Crichton, em seus livros de dinossauros, soube criar cenas em que os animais se comportavam como animais reais, em algumas ocasiões até mesmo demonstravam indiferença para a presença dos humanos. Nos casos em que os animais apresentaram agressividade excessiva (o Velociraptor, por exemplo), o autor usou esta anomalia como pretexto para explicar um pouco de ciência do comportamento animal e quais seriam as razões para o desvio comportamental dos animais do enredo. Realidade Oculta se furta a isso. Os animais são apresentados até humanizados em algumas passagens. Eles sentem raiva. Se sentem humilhados. Demonstram paciência (ou a falta dela). Conceitos complexos, humanos, que são aplicados sem reservas a lagartos e aves.
Também soa irreal e estranho que a equipe de escavação de fósseis leve crianças para o trabalho braçal, até mesmo porque todos estão acampados em condições precárias na mata. Mais estranho ainda é que o professor Strauss saiu com uma barraca para procurar novas rochas com fósseis e levou as crianças selva adentro, para locais ermos e distantes do restante dos outros cientistas.
PONTOS POSITIVOS
Os detalhes do ambiente são bons, como mostrar que havia um clima mais quente no período pré-histórico, e presença dos penhascos com répteis voadores, o estuário que vai formar a rocha com fósseis, a proximidade da África, ainda visível no horizonte. Os tremores de terra, que os cientistas dizem que estariam associados à separação da África em relação ao Brasil também são um toque interessante. Uma imagem original que o livro descreve é a beleza dos masiakassauros, cobertos de lama, pescando nas águas do estuário.
Um trecho que me impressionou positivamente foi no fim do livro, quando os animais surgem assustados dentro da pirâmide, em um momento em que o wormhole está sendo aberto. Isso seria interessante de se ver.
No fim, para mim Realidade Oculta falha como ficção científica adulta. Mas é um bom livro infanto-juvenil, pequeno e sem profundidade, ideal para que crianças e adolescentes sejam levados para o universo da ficção científica. Ele é um bom ponto de partida iniciar a formação de leitores que depois, adultos, vão destroçar as obras dos autores que tanto amamos.