gabriel 21/03/2022
Freire, um pensador quixotesco?
Está é a minha terceira passagem pelos textos de Paulo Freire, sendo as duas primeiras a Pedagogia do Oprimido e da Autonomia, e apesar de estar satisfeito por ter me abastecido "freireanamente" aqui (como se de vez em quando eu precisasse abastecer o meu "tanque pedagógico"), não é uma leitura sem os seus conflitos, e aqui eles, além do estilo completamente horroroso e abominável literariamente (sei que tem gente que gosta, eu não sou um deles), revelam-se também nas suas ideias, claras agora para mim como pontos de discordância. O que na verdade acabou sendo bom, e me ajuda a entender melhor o autor, além de me desafiar intelectual e politicamente.
Eu não consigo aderir à visão de mundo de Freire. Moralista, enxerga as coisas em termos de "bom" e "mal". Dificilmente alguma coisa positiva resulta disso, e como se diz por aí, se alguém fica pagando de honesto, proteja suas carteiras (se alguém se diz muito bonzinho, pode começar a desconfiar). Não acho que suas intenções sejam desonestas, pelo contrário, mas sua maneira de analisar o mundo é prejudicada por esse seu pano de fundo, que pelo menos tem o benefício de se colocar do lado mais frágil (o que é, na verdade, o mínimo do mínimo, e algo muito fácil de fazer, até mesmo demagogicamente).
A frase com que abro a resenha é retirada do próprio texto, em mais de um momento Freire propõe que nos posicionemos "quixotescamente" em relação a fatos políticos. Por que eu deveria ser um Dom Quixote, e não alguém que opera a política eficientemente, é algo nunca explicado. Por que devo fazer algo de maneira pior (lutando contra moinhos de vento, como o personagem) e não de uma maneira mais consciente, que interfere de fato na realidade? Lutar contra inimigos reais e não imaginários? A provocação, então, resulta de uma concretude do texto, e não é apenas gratuita (ainda que talvez seja um pouco injusta, já que retirada do contexto).
Temos aqui alguns dos últimos textos do pensador brasileiro, disponibilizados cerca de três anos após sua morte, em 1997. São, teoricamente, em formato de cartas, mas para mim não fez muita diferença, o estilo me parece o mesmo dos outros textos dele. Ler um texto do Freire é como ler todos, todos ficam circulando em torno dos mesmos temas e são dolorosamente repetitivos. Além disso, são marcados pela extrema pieguice e moralismo. Ainda assim, provocam reflexões importantes e são admiráveis.
O texto me parece bastante inserido nos anos 1990, quando foram escritos, e dialogam com questões que eram atuais na época. Assim, temos um interessante relato indignado contra a queima do índio pataxó Galdino, fato que horrorizou a todos na época. Disso, Freire procura tirar algumas questões pedagógicas, e é interessante ver como ele o faz. Também se pode notar a sua indignação contra o neoliberalismo, a luta na terra e o malufismo (fenômeno político conservador paulista, criador do famoso "rouba mas faz").
Interessante ver que, considerando tudo o que já aconteceu, Maluf seja praticamente um ladrão de galinhas, um pobre coitado, perto do que aconteceu depois Maluf é quase o Che Guevara, mas isso é um comentário lateral apenas. O fato é que este texto já do fim da vida de Freire repercute um pouco temas da sua época, e que permanecem até hoje, principalmente em relação à miséria e ao neoliberalismo (que hoje atingiu a forma caricatata de coaches, empreendedorismo e toda essa tralha). É, portanto, um texto bastante atual.
Freire também aborda, ainda que brevemente, temas da tecnologia, gastando algum tempo falando da televisão (e do seu caráter absolutamente manipulativo, o que é uma afirmação correta), e muito superficialmente falando da informática. Boa parte dos textos são de 1996 e 1997, e Freire ainda não tinha se ligado no fenômeno internet (pelo menos aqui nestes textos), que comercialmente começava a nascer no Brasil. Então, obviamente, essa parte não temos.
A tal da "indignação" pra mim ficou bastante diluída, não é um texto que me parece muito raivoso, o que é decepcionante (mas esperado, considerando o autor). A "boniteza" que o autor prega impede grandes manifestações de raiva. Pacifista, fica difícil entender como seria operada uma revolução (ou se ele mesmo quer uma revolução). Por muito menos, revoluções lavam as ruas com sangue, que dirá uma mudança completamente estrutural. Não é uma coisa bonita de se ver, mas é a roda da história, que até agora só girou assim.
Freire parece apostar numa mudança de cima pra baixo, com as pessoas se tornando "boazinhas" pela educação, o que me parece fora da realidade, primeiro porque precisaria se definir o que é ser exatamente bom ou ético (ele fala muito numa "ética universal humana"; este bicho que só matou e fez guerras, e explora o seu semelhante), segundo que ele parece colocar isso fora de qualquer processo histórico. Como se fosse uma decisão ou criação humana do nada, apenas porque sonhamos e temos utopias. Que bom se as coisas funcionassem assim.
A relação entre pedagogia e política ficou mais clara neste texto para mim. Vendo de fora, Freire me parecia ser um educador "político", o que para mim não tem nada de mais, todo mundo tem direito a ter suas concepções políticas. Mas aqui, a coisa é mais orgânica, e em vários momentos ele explica muito claramente porque toda educação é necessariamente política. Conhecer é um gesto resultante de um "cerco epistemológico" que envolve uma reflexão sobre nosso papel nele, sobre as razões de ser e é impossível separar isso de uma consciência da mudança, de uma vontade de interferir. Sobre isso, estou de pleno acordo com ele, e acho que ficou bem amarrado.
Se fosse pelo meu prazer de leitura e pela minha concordância com ideias (diria que, chutando alto, consigo concordar com uns 50% do que ele diz), eu deixaria três estrelas sem o menor problema, mas não acho que isso seja um bom parâmetro para medir textos, e só concordar ou discordar é um pouco limitador, e aqui devo fazer um esforço para compreender o autor. Literariamente, Freire não me agrada, seu senso de estética é um pouco aberrante pra mim, seu uso de filosofia é superficial e só serve pra entravar o texto, que fica se repetindo indefinidamente. (Detalhe bobo, mas ele não tem o menor senso de como distribuir parágrafos. Você tem uma frase, e depois um colosso de texto num parágrafo só, no seu usual estilo circular e pedante, e também piegas, é realmente um parto pra ler).
De toda forma, é um texto com reflexões ricas, altamente recomendável e que deve ser entendido como um educador comprometido com a liberdade e o respeito aos "educandos" (palavra feia), talvez um filtro de leitura que tente ver nele um grande cientista político, ou mesmo um revolucionário, seja algo despropositado, acredito que seja um texto essencial para quem tenha como propósito pensar a educação.