Too Like the Lightning

Too Like the Lightning Ada Palmer




Resenhas - Too Like the Lightning


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Paulo 19/01/2018

Ao passar as páginas deste livro, me senti lendo novamente A Ilha do Dia Anterior. Uma história interessante cercada de referências filosóficas por todos os lados. Uma leitura que se torna complexa porque a todo o momento o leitor precisa digerir as informações passadas a ele capítulo a capítulo. Sem dúvida alguma, Too Like the Lightning não é um livro para qualquer leitor, e não vai agradar à maioria. Mas, é preciso ressaltar e muito a qualidade da escrita e do conteúdo apresentados pela autora.

Too Like the Lightning é escrito de uma maneira bem curiosa. Antes de mais nada ele é uma espécie de relato feito por Mycroft Canner a um "honorável leitor" a quem ele repassa as informações de três dias. O protagonista descreve os acontecimentos ocorridos em todos os lugares onde ele esteve presente ou que ele tenha obtido os dados posteriormente. Esse leitor a quem Mycroft se refere parece uma quarta parede porque é como se ele estivesse se dirigindo a nós. Mas, não é o caso. Em um determinado momento fica claro que existe uma razão para a qual Mycroft se dirige a esse interlocutor e parece que ele tem alguma utilidade na história. Então podemos dizer que a narrativa é em primeira pessoa em discurso livre direto. Alguns capítulos adotam o formato de entrevistas, enquanto outros são apresentados por outros narradores.

A autora usa uma linguagem normal durante a história, mas nos momentos em que ela precisa se referir à "quarta parede" ela emprega um inglês arcaico. O que me incomodou na parte da escrita é a difícil curva de aprendizagem do livro. Eu estive para desistir em um momento da leitura porque nada fazia sentido, mas assisti a uma booktuber que eu gosto dizendo para persistir na história que por volta da metade tudo iria começar a fazer sentido (apesar de a autora ainda esconder muita informação). De fato isso aconteceu, mas no meu caso foi um pouquinho antes, por volta dos 40%. Não são todos os leitores que terão tamanha paciência com a história, persistindo em uma leitura complexa, porém é como se o Mar Vermelho se abrisse. Tudo começa a ficar mais claro e a história passa a fluir melhor.

Os personagens são a grande riqueza da história. Todos são muito bem detalhados e complexos. Estamos diante de uma variedade de personagens que possuem características e objetivos diferentes. Seja o bash Saneer-Weeksbooth com os seus personagens exóticos ou o Illuminati de pessoas importantes que manipulam os acontecimentos do mundo. O que eu mais curti na prosa da Palmer foi a personalidade que ela dá aos personagens. Seja o luxurioso Ganymede, à doce, porém ardilosa Danae, à cafetina Madame, ao divino J.E.D.D., ao empresarial Mitsubishi. Estou falando da galera que compõe o poder neste mundo antes do bash (do clã) Weeksbooth porque eles me chamaram mais atenção. E isso porque a história gira inicialmente em torno dos poderes de Bridger. Mas, mais para frente vemos que existe muito mais no pano de fundo.

Mycroft Canner é o exemplo do narrador não-confiável. O curioso é que nós, leitores, estamos acostumados com um tipo de narrativa mais linear. Desconfiamos no máximo quando se trata de uma história mais intimista em primeira pessoa. Quando é um épico em grande escopo, é difícil desconfiarmos. E aqui é preciso desconfiar o tempo inteiro. O personagem é um assassino em massa, e que aprendeu com o seu "encarceramento" a usar o jogo político a favor dele. A perceber que ele pode se tornar parte do pano de fundo e usar tudo e todos para colocar em funcionamento aquilo que ele deseja. Canner é uma espécie de serviçal coletivo. Como ele causou danos a todos os clãs deste mundo, ele se tornou escravo de todos os clãs. Sequer tem o direito de dormir enquanto o seu amo não o liberar. Isso faz com que ele esteja presente e saiba dos jogos políticos de todos os clãs. Sem querer, a pena pelos seus crimes fez de Mycroft um homem ainda mais perigoso.

Já o clã Weeksbooth parece bem legal no começo de acompanharmos. A agitada Thisbe, o introvertido Cato, o louco Eureka e o escondido Bridger. Ah, e ainda tem o astro Sniper. A ação começa quando um novo sensayer (um homem responsável por sanar as dúvidas sobre religião e filosofia de um clã) é enviado para lá. Carlyle Foster é um sensayer fora do comum porque não segue muito bem a cartilha e tem uma visão muito inocente das coisas. Neste mundo, o proselitismo religioso foi proibido. Sequer mencionar uma religião a uma pessoa ou que você adotou uma é considerado crime. No máximo a pessoa pode consultar um sensayer e conversar com ele a respeito de suas dúvidas e angústias. Carlyle acaba encontrando Bridger, um menino capaz de dar vida a objetos animados: ele tem um exército de soldados de brinquedo, fez um desenho de uma poção de cura funcionar e ressuscitou um soldado morto usando métodos não convencionais. Tudo isso bagunça as crenças de Carlyle em Deus (no deus em que ele acredita).

A narrativa é profundamente afetada pela filosofia do período conhecido como Iluminismo. Temos referências a vários deles como Voltaire, Diderot, Tocqueville, Rousseau. Existe uma segunda camada por baixo da história que vai tornar a leitura ainda mais rica. Entretanto, não é obrigatório ao leitor conhecer estes filósofos ou suas doutrinas. É possível entender bem a história sem isso. A autora consegue fazer essa transição muito bem e aproveitar nos mínimos detalhes estas ideias e mesclá-las com o que ela propôs. Para quem ler e ficar curioso, o Marquês de Sade realmente mistura reflexões políticas e teológicas ao lado de descrições sexuais extremamente vívidas. Fiquei chocado com isso.

Outro aspecto interessante é a questão de gênero. Para acabar com a intolerância do mundo os governos decidiram anular o gênero das pessoas. Ninguém precisa assumir um gênero e pode mudar o seu rapidamente. A reprodução pode acontecer a partir de outras formas (não muito bem explicadas aqui... dá a entender que ainda seja sexual). Porém, Mycroft Canner, o transgressor, descreve as pessoas com o seu gênero. Ele mesmo se repreende em determinados trechos, mas pouco se importa com isso "pelo bem da narrativa", em suas palavras. A autora usa o pronome "they" em inglês para transmitir essa neutralidade. Lembrando que este pronome pessoal tem função de eles ou elas, e pode ser usado tanto para pessoas como para animais. Foi uma solução diferente da empregada por Ann Leckie em Justiça Ancilar (ela usou "it", que tem a mesma função, mas no singular).

Gostei bastante da narrativa no final e fiquei chocado com o último capítulo. Ele bagunça tudo o que a autora construiu neste primeiro volume. Adoro livros que me desafiem a me tornar mais atento ao que me é passado, e este aqui se coloca justamente nessa circunstância. Já até comprei imediatamente o segundo e o terceiro volumes, mas admito que esta história não tem muita ação. É um livro de altas ideias que vai agradar a fãs de livros como Fundação, O Nome da Rosa e A Ilha do Dia Anterior.

site: www.ficcoeshumanas.com
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