Guerra dos Lugares

Guerra dos Lugares Raquel Rolnik




Resenhas - Guerra dos lugares


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João Moreno 26/08/2020

Estar às margens e resistir:a guerra dos lugares, a colonização da vida e a privatização do mundo

"ESTOU INSERIDO NO PROCESSO URBANIZATÓRIO (...) talvez defina a minha relação com a propriedade privada e o direito à moradia: conceitos ambíguos, contraditórios e antagônicos para aqueles que estudam a história do Brasil. Mas essa não é uma história sobre mim. Ou não apenas sobre mim. Talvez, para entender o que eu quero lhe dizer, precisemos voltar no tempo, há mais de 80 anos (...) [trecho presente em 'Um pouco de ar, por favor! Crônicas e reportagens sobre o transporte público de Goiânia', p. 55].

Apesar de apenas ter terminado a leitura de 'Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças' agora, já escrevi algumas vezes e longamente sobre a obra, antes (aqui, aqui também, nesse outro trecho e as ideias e as legendas das fotos 9 a 17 têm inspiração no trabalho da autora). Não sei até que ponto a leitura incompleta e picotada atrapalhou em minha interpretação, até seria mais produtivo jogar o que já escrevi, aqui, mas eu PRECISO fazer alguns breves apontamentos. Sabe quando é necessário contar - mesmo que ninguém venha a ler - sobre o que aquela leitura te causou? Pois é. De-sa-ba-fo.

1. Primeiro eu preciso apontar que estou dialogando sobre um livro "poderoso". 'Guerra dos lugares', nascido a partir da tese de Livre-docência de Raquel Rolnik enquanto relatora pelo Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (ONU), professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), fala de um tema complexo, naturalizado e que organiza e reordena os nossos sentidos quanto aos espaços públicos (a cidade), mas também quanto à moradia.

Ao discutir a transformação da moradia em ativo financeiro – e aqui está a tese central do livro, discutida exaustivamente ao longo de mais de 400 páginas –, Rolnik demonstra como o capitalismo financeirizado “desdemocratiza” e marginaliza um grande número de pessoas: qualquer cidadão em qualquer parte do mundo que esteja na frente de uma "frente de expansão imobiliária".

Em 'Guerra dos lugares', divido em três partes mais 'Notas finais' e 'Posfácio' à segunda edição, Rolnik (2019) descreve como esse processo se dá em todo o globo, usando como exemplo estudos de caso de países específicos, tanto "desenvolvidos", como EUA, Reino Unido, Suécia – os quais até a emergência do Neoliberalismo não tinham problemas relacionados à moradia –, quanto os países pós-socialismo real e o chamado Terceiro Mundo.

Entendendo que, apesar de global, a financeirização ocorre de acordo com as especificidades de cada país, a primeira parte é destinada à financeirização através do sistema hipotecário, aquele, que gerou a bolha imobiliária de 2007. “O primeiro modelo diz respeito à transformação das hipotecas em ativos financeiros, os quais passam a ser vendidos num circuito financeiro global”.

Na segunda parte, a autora descreve como, no capitalismo financeiro, a propriedade se transforma em ativo fundamental e forma necessária à reprodução do Capital. Para tanto, a "frente de expansão imobiliária", a qual não respeita fronteiras, avança pelo mundo em busca da conquista de novas terras e mais acumulação. Agora, a única "liberdade" possível é a da propriedade privada e escriturada, passível de ser hipotecada e negociada no Mercado Financeiro mundial. A extração de juros e renda sobrepõe o direito à moradia nos países do "Terceiro Mundo", os quais admitiam, até então, formas diversas de relação de seus povos com o território. Nesse trecho, Rolnik (2019) exemplifica como o Estado, subordinado à Economia, transforma-se em instrumento de remoção, flexibilização de leis e readequação da ordem em prol das "frentes imobiliárias de expansão". É na segunda parte que aprendemos sobre os Megaeventos, sobre como os desastres naturais e as guerras civis passaram a ser instrumentalizadas para realocar pessoas que possam vir a impedir a expansão financeirizada.

Na terceira parte, Raquel Rolnik (2019) fala sobre o Brasil e sobre as especificidades da financeirização brasileira da moradia, a qual conta com fundos públicos geridos por trabalhadores (WTF) e uma intersecção muito poderosa entre empreiteiras e Estado, subordinado, obviamente e desde sempre, ao "Deus Mercado". O destaque está na 'política de habitação' aplicada pelos 'governos de Esquerda' (sic), o 'Minha Casa Minha Vida', planejado pelas próprias empreiteiras como resposta à crise de 2008. Trata-se, numa análise crítica, de potente instrumento de exclusão e de remoção de pessoas pobres dos centros e de áreas valorizadas destinadas ao capital fictício.

No 'Posfácio' (p.381-405), Rolnik descreve como, após a crise, os "senhorios corporativos globais" ("global corporate landlords") alargaram a sua forma de atuação se apropriando das casas executadas, transformando em redes de aluguel, aproveitando-se da alta demanda (pessoas despejadas), até que os ativos voltem a se estabilizar. A ação provoca impactos nas cidades pois tende a inflacionar o preço de aluguéis; apresenta aos Estados uma nova forma de investimento e faz com que ele, Estado, busque mecanismos para extinguir a regulação dos preços, tornando inseguro o direito à moradia. A autora passa pelos apps compartilhados (AirBnB) e como a "tirania do consumidor" tem impactado a vida de pessoas em cidades bastante visitadas, como Barcelona ou Nova York, por exemplo.

2. Segundo: Rolnik (2019) me presenteou com teoria para explicar a minha trajetória de vida, mas não só a minha. A partir do trabalho, ressignifiquei a noção de casa, território e como tais conceitos conformaram e conformam a minha identidade. A partir de 'Guerra dos lugares', consigo entender a cidade como um espaço de disputa e de exclusão e o porquê que:

"Durante a Ditadura, minha avó materna – meu núcleo duro familiar – participou do movimento de migração não planejado da política de segurança dos militares. A minha família – assim como a dos brasileiros – viveu à margem, marginalizada, pois o Estado brasileiro fez uma escolha: ao investir maciçamente em infraestrutura, abdicou do investimento em políticas sociais, em educação, saúde e moradia.[14] Foi nos governos militares que o país cresceu, o salário mínimo diminuiu e as estruturas de desigualdade aumentaram consideravelmente.[15]

Dona Zonte, então, comprou um “barraco”, por alguns contos de réis (ver anexos ao final deste livro). (Re)construiu a sua casa junto aos filhos, num processo de “autoconstrução”, à margem, mais uma vez. Também à margem de um córrego, o Capim Puba, hoje, um dos mais poluídos de Goiânia. Distante de qualquer regulação estatal, Dona Lizontina foi construindo e criando raízes no setor. (...) a autoconstrução, aquém de padrões mínimos de segurança, infraestrutura e acesso a saneamento básico, por exemplo. Mas Dona Lizontina teve sorte! Apesar de ter permanecido à margem, ela não sabia que, ao comprar um “barracão contendo quatro (4) cômodos, com instalação de luz, construído de tijolo, piso cimentado, situado à Rua 6-A”, por 20 mil cruzeiros, em 28 de julho de 1977, o lote, que pertencia até então à Dona Arcelina, por estar localizado numa região central, sofreria inúmeras melhorias por meio dos chamados “efeitos de externalidade”,[16] além de possibilitar, devido à localização, acesso a serviços essenciais e até economia nos deslocamentos diários. Nesse sentido, os filhos e netos de Dona Lizontina que ali moraram foram “privilegiados”." [Trecho de 'Um pouco de ar, por favor!, p. 57-58].

E foi assim que 'Guerra dos lugares' passou a significar muito pra mim. Raquel Rolnik também. Gostaria de terminar o texto agradecendo a autora, apontando como a sua obra tornou-se favorita, ao lado de 'Brasil: uma biografia'. Como, depois de lê-lo, carrego o livro comigo, folheando-o, me sentindo mais inteligente, mas principalmente privilegiado por ter acesso ao trabalho. Agora vou dormir, talvez, metaforicamente falando, abraçado ao livro, repassando o que foi me ensinado, um pouco mais consciente das transformações sociais as quais estou submetido, mas desesperado pela sensação de inevitabilidade desse processo e a impotência causada por ele. Daí eu me lembro de suas "Notas finais", sobre "porosidades, resistências e a quebra do consenso" (p. 369), estrategicamente colocadas ali, ao final, para nos lembrar que não há "fim da história" enquanto formos capazes de resistir, de diferentes maneiras:

"(...) Assim, diante da já citada crise fiscal e das políticas de austeridade pelas quais os Estados-nação passavam, surgiram, naquele momento, diferentes formas de se pensar a política urbana, como o Orçamento Participativo, os mutirões, os modelos de autogestão, a criação de conselhos etc. A professora destaca que os modos alternativos floresceram diante da “completa falta de dinheiro”. Por isso, entendendo o processo histórico, a professora tenta reivindicar o legado. Pois o momento em que a moradia deixa de ser direito e se transforma em mercadoria poderia ser o momento de se pensar, coletivamente, em um novo modelo de cidade, na visão de Rolnik.

Se, como descrevemos, o modelo atual não apresenta a resposta para a questão da crise urbana – violência, mobilidade urbana, direito à moradia, universalização do acesso a bens culturais etc -, uma vez que o discurso único não oferece alternativas e novas práticas à cidade, o modelo ideal de Raquel Rolnik seria uma política urbana “anti-condomínio privado”, “anti-shopping”; um modelo que se pautaria pela ocupação do espaço público. Porque, para além de movimento de redefinição do espaço, a ocupação da cidade também diz respeito à redefinição da política. Trata-se, no fim, de defender a dimensão pública, a base de uma República." [Trecho de 'Um pouco de ar, por favor!, p. 87].

E ao estarmos aqui, discutindo resistência ao processo global de financeirização da moradia e privatização do mundo, não estamos de alguma maneira... resistindo? E estarmos aqui, discutindo coisas complexas, não é um motivo de esperança? Para o sociólogo Manuel Castells, “a esperança projeta o comportamento no futuro”. "Continuemos, então, com o autor: se a organização coletiva é o “motor de mudança do mundo”, o que podemos fazer para unirmos as nossas demandas coletivas" em torno de uma nova organização do espaço?

Se desde o início esse texto se conformou numa resenha (?) com uma mistura de relato pessoal, deixo mais um registro de como 'Guerra dos Lugares' ajudou-me a registrar parte da minha história.

"Eu acabei de perceber que você não perguntou nada disso, especificamente, mas eu quis ilustrar, com algum personagem, o que estamos discutindo em toda essa perspectiva teórica e histórica, por todas essas páginas. Perdoa a prolixidade? Para finalizar, preciso falar que a Dona Lizontina, minha avó, enquanto viveu, viveu também a condição da ambiguidade. “Numa questão de tempo e espera. Tempo até o local onde vivia estar “no caminho” de uma “frente de expansão imobiliária” e espera por não saber quando isso iria acontecer, à margem – mais uma vez! – de todas as legalidades”, sem “garantia de nenhum tipo de vínculo ao território”[55]. Querendo ter direito a ter direitos, Dona Zonte esperava. Olhando pra cima do “buraco”, como, às vezes, ressentida, se referia ao declive em que morava, num “fundo de vale”, local em que havia se “enraizado” (ver anexos ao final deste livro). Se num país de analfabetos[56] os registros documentais eram escassos, às vezes, história e memória se confundem para leigos, mas também para jornalistas. Quando isso acontece, a história oral se transforma em “ferramenta de transmissão de valores, sentimentos e visões de mundo (…) transmissão de cultura”.[57] E é também por isso que esse foi, sem dúvidas, o texto mais difícil, deste livro, para mim. [‘Um pouco de ar, por favor!’, p. 68-69].

"FOTO. 14. Imagem da Dona Lizontina, brasileira, mãe solteira, de seis filhos. No abandono, encontrou amparo na religião. Os relatos são imprecisos, mas o documento de compra data de 1976. A casa mostrada na foto, autoconstruída e autoproduzida, é o mesmo local em que Dona Zonte, como também era chamada, moraria pelos próximos 40 anos, até o fim de sua vida. Quando convidada pelos filhos a se fixar em outros lugares, a sair do “buraco”, como mesmo chamava, não se atreveu à mudança. Sabia, sem saber que sabia, que moradia é muito mais do que tijolos ou paredes: tem a ver com território, identidade, pertencimento, comunidade. Rua 6-A, Setor Aeroporto, Goiânia. Acervo pessoal, sem data." [o trecho está nos anexos do livro-reportagem 'Um pouco de ar, por favor! Crônicas e reportagens sobre o transporte público de Goiânia', p. 218. Disponível aqui: < https://literatureseweb.wordpress.com/2020/03/18/um-pouco-de-ar-por-favor-anexos-caderno-de-fotos-tabelas-e-figuras/ >.

Resumi o máximo que pude de 'Guerra dos Lugares' no link abaixo.


site: https://literatureseweb.wordpress.com/2020/08/26/resistencia-e-resistir-uma-resumo-de-guerra-dos-lugares-de-raquel-rolnik/
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Itsmaivis 01/01/2021

Livro incrível sobre urbanismo! A partir do momento em que entendemos que moradia de qualidade é um direito para todos, a qualidade de vida é aumentada. Super recomendo para quem faz Arquitetura e Urbanismo, ou, se interessa pelo assunto de moradia a todos e todas (financiamento ou não).
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