Leonardo 25/11/2019
“Eu sou Kunta Kinte, primeiro filho de Omoro, que é filho do homem santo Kairaba Kunta Kinte! ”
O que fica na nossa memória, quando aprendemos sobre a escravidão, são imagens de escravos negros acorrentados e submetidos a condições subumanas. Essas condições desumanas tiveram o efeito de tirar completamente dos escravos as suas identidades como seres humanos. O livro Negras Raízes, caso tivesse que ser reduzido a poucas palavras, poderia ser resumido como uma saga cujo eixo central gira em torno da importância do nome de alguém e de sua língua como instrumentos de identidade e resistência de um ser humano. Língua, aqui, deve ser entendida no sentido mais amplo. Quando falamos de língua, fazemos referência a todo um repositório cultural de um povo. Esses dois elementos (nome e língua) dão ao ser humano uma compreensão de como ele é no plano individual (no caso do protagonista, seu nome: Kunta Kinte) e coletivo. Kunta Kinte é membro de algo maior do que ele. Na verdade, ele é membro de algo que é maior do que a soma individual de cada membro de sua tribo (os mandinga). E é isso o que nosso personagem central visa resguardar a todo custo. O começo do livro é enternecedor. Ele nos mostra o nascimento de Kunta Kinte e depois o ritual por meio do qual ele recebe o seu nome. Vemos como Kunta, à medida que vai crescendo, toma ciência de toda a sua genealogia e cultura tribal. O livro, nesta primeira parte, mostra como é a rotina de uma tribo africana. Vemos os vários rituais de passagem que levam Kunta Kinte até a condição de homem, na tribo. Essa primeira parte da história (que corresponde a quase um quarto da obra) renderia, por si só, um livro. Esse início de livro é um verdadeiro romance de formação. Em um segundo momento, temos a captura de Kunta e o seu envio para a América via navio negreiro. A narração do tempo que se passou na embarcação foi muito angustiante para mim. Foram várias páginas descrevendo um grande suplício (ver seres humanos reduzidos a animais capturados e acorrentados). Os africanos foram submetidos a condições extremamente insalubres (viviam em meio a seus próprios excrementos, urinas, vômitos). Havia ratos, piolhos e pulgas nos porões do navio. Era um ambiente totalmente escuro, sem ventilação alguma. Eram açoitados por qualquer motivo. Mulheres eram estupradas. Os homens se sentiam com raiva, impotentes ante esse e outros abusos. Vez ou outra subiam até a parte de cima do navio para serem lavados. As cascas das feridas eram esfregadas com força e a água salgada do mar joga sobre elas, causando muito sofrimento. Parece que havia uma determinação dos brancos em não só subjugar os negros fisicamente, mas também moralmente. E assim, se passaram muitos dias nesta angústia (mais ou menos de oitenta a noventa dias). Algum consolo mínimo para eles foi quando começaram a se comunicar (a despeito das diferenças de língua e tribo) na escuridão do porão. Agindo assim, não mais sentiam-se tão sós. Foi muito angustiante ler isso. Isso deveria ser objeto de leitura quando ensinamos para as nossas crianças na escola a história da escravidão. Ler isso por um bom tempo (40 páginas) me deu uma ideia muito mais viva do sofrimento dos escravos. Acho que se eu visse um filme sobre o assunto o impacto não seria tão grande. Esta é a magia da literatura: nos propiciar viver uma série de vivências e sentimentos de uma forma muito forte. Isso suscita reflexões. Isso nos torna mais humanos, pois nos colocamos no lugar do outro. Eu cheguei a parar e pensar: será que existem demônios ou o diabo? Será que isso tudo não é um bode expiatório para nos impedir de chegarmos à conclusão de que o diabo somos nós mesmos na verdade? Em um terceiro momento da trama, Kunta Kinte chega finalmente à América. Lá, ainda que acorrentado e reduzido à condição de escravo, empreendeu inúmeras fugas. A cada fuga frustrada, eram-lhe aplicados castigos muito fortes, cujo ápice culminou na amputação de metade de seu pé. Não podendo mais fugir em razão de sua nova condição deficiente, Kunta buscou se adaptar ao seu contexto opressor. Por ter nascido livre, Kunta nunca foi escravizado em sua mente (e seguiu assim até o fim de sua vida). Acompanhamos ao longo da história inúmeras reflexões de Kunta. Kunta Kinte estranhava os brancos, pois via neles uma determinação de se acharem civilizados e bondosos. Esses brancos não tratavam os negros como um ser humano, mesmo tendo erguido o seu estilo de vida privilegiado sobre o suor escravo. Os brancos desumanizavam os negros ao não permitirem que eles falassem ou fizessem qualquer coisa que remetesse a sua origem tribal africana (e, logicamente, não podiam também saber nada da língua dos brancos, pois poderiam se tornar “perigosos”, pensantes). Os escravos não podiam ter um nome africano ou algo que fosse muito estranho; os negros tinham que ter junto ao seu nome, desde seu nascimento, o nome de seu senhor. E essas situações todas que acarretavam uma perda de identidade eram para Kunta o pior que se podia fazer a um negro. Kunta Kinte estranhava os escravos nascidos na América (muitos, para seu espanto, “meio claros”). A seu ver, parecia-lhe que eles não tinham a menor noção de onde tinham vindo. Não sabiam a que tribo tinham pertencido na África. Não sabiam nada de seu idioma de origem na África. E isso, para esses escravos, para o espanto de Kunta, não era da menor importância. Enfim, Kunta estranhava esses seres sem identidade. Para Kunta, eles eram seres submisso, domesticados pelo homem branco. Kunta sempre orgulhoso de seu nome, língua e pele negra retinta (e sem mistura alguma com uma gota de sangue branco), a princípio não se misturou com esses escravos (ele jurou a si mesmo que não seria como eles). Estes escravos também, por sua vez, estranhavam Kunta. Os escravos que tinham nascido na América sabiam como se portar nas fazendas. Maneiras aparentemente submissas, na verdade, eram máscaras que escondiam formas de se adaptar e resistir (dentro do possível) ao meio cruel em que viviam. Kunta, em seu orgulho, não percebia as coisas assim (por isso que, a princípio, esses negros também não confiavam em Kunta). Aos poucos Kunta se aproximou (o orgulho lhe acarretava muita solidão), criou poucas, mas boas amizades. Teve uma esposa (Bell) e uma filha (Kizzy). Para a filha, sempre fez questão de passar a sua identidade livre - de raízes africanas - o que englobava seu idioma e toda a carga cultural que ele traz. À filha ensinou o nome africano para uma série de objetos e seres. E a sua filha passou para os seus filhos essa herança cultural. E de geração em geração a história de Kunta foi passada. Kunta Kinte significava para seus descendentes as suas origens, o espírito livre e o orgulho de ser negro. De geração em geração temos um desfile de nomes e acontecimentos dramáticos. Acompanhamos algumas revoltas negras malsucedidas, rumores de guerra, o crescente receio do homem branco do sul contra os iminentes ventos de mudança, a guerra civil americana e a libertação dos escravos. O fim da história culmina com o nascimento do autor do livro, Alex Haley (descendente de Kunta Kinte). A partir de seu nascimento acompanhamos uma nova geração de negros libertos que vão conquistando, com trabalho e competência, o seu lugar de dignidade na sociedade americana. Certa vez, o poeta português Fernando Pessoa disse: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Acredito que o alcance dessa frase possa ser obtido por meio da compreensão de toda a história de Kunta Kinte. Ele, mesmo senso escravo e longe a milhares de quilômetros de seu lar, sempre carregou a África consigo ao cultivar a sua língua ancestral e toda a sua cultura embutida nela. Cada um luta com as armas que tem, e Kunta Kinte lutou usando a sua amada língua. Kunta lutou preservando a sua memória de homem livre. Quando os brancos tentaram impor um nome a ele (queriam chamá-lo de Toby), na tentativa de despersonalizá-lo, ele reagiu dizendo, indignado: “Eu sou Kunta Kinte, primeiro filho de Omoro, que é filho do homem santo Kairaba Kunta Kinte! ” Negras Raízes... agora parece óbvio, mas só após a leitura do livro pude compreender, em sua totalidade, o significado desse título.