spoiler visualizarVí Koga 18/07/2018
A loucura como fuga da violência em "Uma menina está perdida no seu século à procura do pai", de Gonçalo M. Tavares
O presente ensaio refletirá sobre a ideia de violência construída no romance Uma menina está perdida no seu século à procura do pai , do autor Gonçalo M. Tavares, a partir das diversas sensações de estranhamento apresentadas nas histórias dos personagens que cruzamos na trajetória de Marius e Hanna. Essas histórias, muitas vezes desconexas da intenção de procura exposta no primeiro plano do enredo, servem de caminho duplo - tanto para nos servir de obstáculos e de distração ao nosso olhar e ao nosso instinto investigativo como para evidenciar a loucura como fuga da realidade ou das consequências de um cenário fragmentado e marcado pelos fatos históricos do século XX.
O livro em primeiro plano mostra a história de Hanna, uma menina sozinha que possui Síndrome de Down e que está à procura do pai. Marius ao encontrar Hanna estranha a princípio a fisionomia da garota, que pelo formato de seu rosto e traços aparenta ter uma necessidade especial. Ao se deter mais um pouco e examinar o que a menina carrega nas mãos, Marius nota que Hanna possui certas fichas que dão instruções de como ela deve agir, reagir, lições de higiene, locomoção, dentre outras orientações comportamentais para quem apresenta alguma deficiência mental. Marius resolve perguntar para as pessoas e lojistas, próximos ao local onde Hanna foi encontrada, procurando saber se alguém a conhecia ou sabia como Hanna poderia ter acabado sozinha naquele lugar. Essa procura que surge da necessidade de saber do passado, presente e futuro do outro, no caso Hanna, criar vínculos entre as histórias dos dois de forma indissociáveis por uma procura compartilhada, tanto pelo objetivo de Hanna assim como pela origem e destino de Marius.
A partir do encontro dos dois damos início a nossa trajetória pelo romance. Saímos à procura pelo pai da garota, sem orientação devido às limitações que Hanna tem em repassar as informações e vamos acelerando nessa busca desenfreada guiada por Marius. Corremos em fuga e em busca, esbarrando em histórias de diferentes pessoas unidas por uma sensação de estranhamento que nos leva a uma pausa em nosso movimento. Somos obrigados a frear e observarmos o nosso espaço, nosso corpo e a organização de como outro faz em seu tempo. Somos obrigados a aceitar a orientação das fichas de Hanna, que fazem perguntas óbvias, nos ensinam movimentos primários de coordenação e nos obrigam a repensar os nossos atos dentro de nosso tempo.
Se estávamos à procura do pai de Hanna e seguindo os passos de Marius, somos surpreendidos pelo misterioso fotógrafo Josef Berman, que nos conta sobre seu ofício e nos mostra suas fotos que retratam animais sempre nas mesmas posições, de frete e perfis, como se fossem presidiários, fotos de animais com olhos tristes. Depois mais fotos com a mesma lógica de organização e captura de posição postural, mas agora de pessoas com algum tipo de deficiência, assim como a de Hanna. Fotos que provocam em Marius e em nós um estranhamento e repulsa estética do outro, primeiro porque Josef tem essa fixação de organizar seus modelos e segundo por querer retratar aquilo que foge a normalidade.
Seguimos a caminho da cidade indicada por Hanna onde provavelmente poderíamos encontrar seu pai. Dica pronunciada em poucas sílabas da palavra e muito mais deduzida por Marius do que afirmada por Hanna. Berlim era cidade que uma palavra mal formulada dava a direção do caminho a seguir. Durante a viagem cruzamos com Fried Stamm, integrante de um exército de cinco irmãos, que colam cartazes que devem parar o maior número de pessoas para observá-los. Para Fried colar os cartazes é uma forma de se manifestar e provocar uma revolução, mas essa ação não é fácil de ser cumprida, pois os cartazes devem ser fixados em lugares que favoreçam sua notação, todavia, essa construção se mostra contraditória uma vez que a palavra exército supõe uma noção de um número de pessoas maior do que cinco e os locais onde os cartazes são colados ficam em ruas escondidas.
Chegando à Berlim, Marius e Hanna se hospedam em um hotel que possui quartos com nome de campos de concentração assim como na Alemanha durante o regime nazista. O único quarto disponível tem o nome de Auschwitz e é nele que ambos dormem. Os donos justificam a organização por serem judeus, e isto é o que os permitem fazer isso, um direito conseguido pelo sofrimento ou um ato para não esquecer aquele tempo. Moebius, dono do hotel, possui em suas costas a palavra “judeu” tatuada em diversas línguas. Suas costas tem uma estética tão plana e juntamente com a palavra em diversos idiomas aparenta ser um mapa com as principais cidades que estavam os campos de concentração. Já Rafaela, esposa de Moebius, é uma senhora com uma mania de avareza, mas que possuem mecanismos de sempre passar aos hospedes uma sensação contrária. No mesmo hotel cruzamos com o hóspede Terezin, idoso que mora no mesmo quarto a doze anos e carrega consigo sempre o mínimo de coisas para não perder tempo pensando no que carregar se algo acontecer e, ele precise fugir.
Mais à frente, conhecemos um senhor apelidado por Marius como Dom Quixote, Vitrus, antiquário que herdará dos homens da família uma esquisita tradição marcada por infinitas, milhares, centenas, dezenas frequências de números pares e que ele precisa fazer todos os dias para dar continuidade. É por essa organização que Vitrus consegue lembrar datas e acontecimentos históricos. Em uma passagem Vitrus mostra algumas sequências a Marius e indica que foi exatamente ali que houve o início da primeira guerra mundial. Como também, o artista Agam Josh, possuidor de uma disfunção ocular, onde os olhos servem de reguladores de sua sanidade mental. Agam produz micro desenhos e, muitas vezes é contratado para cifrar obras com frases fruto de vinganças, que tem como objetivo uma agressão silenciosa identificada somente por microscópio ou por aquele que solicita a produção.
Esses personagens possuem características que beiram a loucura, mas todas essas formas de organização que é desvendado pelo ato da procura nos levar a pensar como essa loucura está ligada ao processo de organização temporal da memória - algo individual, construída por nossos pequenos atos, organizada de forma fragmentada e muitas vezes enganada por nossas expectativas – assim como, pela violência ocorrida durante o século XX no decorrer da história mundial.
Todas essas histórias servem de pontos fragmentados para que cheguemos às consequências da primeira guerra mundial e na verdadeira busca de Marius - se livrar dessa possível loucura que ronda a todos que tenham presenciado ou vivido dentro desse século. Quando Marius se perde de Hanna na multidão podemos entender que a busca pelo pai da menina nada mais é de um contratempo para desviar o nosso olhar dos por menores a essa violência silenciosa e simbólica. “Gritar quando sentir dor”, ato ensinado pelas fichas e que Marius sem mais dependência delas ou de Hanna consegue reproduzir quando se sente a vontade junto à massa.
Bibliografia:
TAVARES, Gonçalo M. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.