André Foltran 08/03/2019Fábrica de elementos desajustadosA literatura vigente abomina as religiões e suas quimeras sempre acima da razão, alheias a qualquer entendimento. O escritor contemporâneo esqueceu Deus, só os demônios internos lhe interessam. Nesse sentido, O vento que arrasa é um livro na contramão, tão arcaico que chega a ser moderno. Nele, duas famílias se encontram: um mecânico e seu enteado, um pastor e sua filha. O cenário é o fim do mundo: uma oficina beira de estrada. Quebra o carro do pastor, o mecânico o conserta. Uma tempestade se aproxima.
O que Selva Almada faz com esses simples personagens é parecido com uma profanação. Uma profanação invertida, saca? Seu pastor não soa tolo, como poderia acontecer na bic de um escritor qualquer, como normalmente soam os pastores. A filha, garota inteligente e de personalidade forte, nunca chega a rebelar-se ante a fé paterna, para a incompreensão e o total desespero do leitor; pelo contrário, ao ouvir um sermão do pai parece acreditar mesmo em cada uma daquelas palavras. O enteado, talvez filho do mecânico, seduzido pela pregação do forasteiro, por aquelas "boas novas" que jamais lhe contaram, sente o demônio da fé tomar sua mente com o cair da noite. Estranhamente, a religião na vida desse garoto interiorano abre-se como uma oportunidade, talvez única, de ampliar seus horizontes, de escapar do destino do pai, de enxergar o mundo, ainda que pra isso seja preciso adotar um novo Pai, seguir a um tenebroso chamado e tornar-se também um pouco cego. O mecânico incrédulo, figura mais instintiva do grupo (a mais decadente também), faz contraponto com a fé nessa batalha injusta, armada desde o princípio pra que ele perca.
Um livro de seres defeituosos. De filhos cujas mães tiveram de partir. De filhos criados pelos pais. A figura paterna também não os livra do desajuste. Porque é a vida, avisem ao general Mourão, a grande "fábrica de elementos desajustados". Órfãos em algum grau, preenchemos o vazio da forma possível, sempre à mercê de qualquer tempestade. Uns chamam a tempestade de destino; outros, escolhas. Outros, Jesus. Independente do nome, ela vem. Vem sem pedir licença, não respeita nada. Vem arrasar com tudo.