MatheusPetris 25/04/2024
Um romance no nível do olhar
É quase automático aproximar a literatura de Robbe-Grillet ao cinema dele ou ao cinema de vanguarda num geral. Mas e se o aproximarmos do cinema clássico, mesmo que com destino moderno? Há uma citação famosa em torno do cinema de Hawks, no qual afirma-se que sua câmera filma no nível do olhar; é ele próprio quem situa seu cinema no nível do olhar.
É claro que a intenção deste breve ensaio não é de comparar (sistematicamente) o cinema de Hawks à literatura de Grillet, até porque o primeiro é uma arte do movimento, da ação, do perigo, enquanto o segundo nos remete a suspensão, a impossibilidade de progredir, reagir perante o tempo, porém, podemos situá-lo no nível do olhar, da aparência das coisas. É o próprio narrador deste romance quem diz: “O animal parou bem no meio da parede, exatamente à altura do olhar”. Narrador este que parece circular pela casa, por seus arredores, capta como se fosse realmente uma câmera. Inclusive, se aproxima dos objetos (zoom-in), contudo, não conhece suas histórias, apenas pode conjecturá-las.
Este narrador não conhece a subjetividade das personagens, sua internalidade, apenas vê, observa. Essas personagens são escassas, apenas conhecemos suas silhuetas, suas rotinas. Se limita, basicamente, a quatro: a dona da casa, o vizinho que a visita, o criado da mulher e a esposa do vizinho (que nunca vemos). É basicamente o que Rogério Sganzerla fala do cinema de Hawks (e do cinema moderno): “Não conseguimos conhecer, saber ou possuir os seres e objetos, conseguimos somente ver que eles existem”.
Quase tudo gira em torno dos dois primeiros personagens. O título do livro, O Ciúme, parece nos levar a um possível caso entre eles, o que nunca acontece de fato; apesar de existirem indicativos de uma certa atração entre eles. Pode ser, mas não é. Essa parece ser a tônica do livro.
O tempo, suspenso, uma certa impossibilidade de progredir, faz com que o narrador repita descrições, momentos, inclusive, embaralhando uma noção temporal. Aquilo de fato aconteceu no passado? Qual é o presente? Elas se repetem, mas não se modificam, apenas são. É mais ou menos o que diz o próprio narrador, num comentário aparentemente metalinguístico: “(...) sem dúvida é sempre o mesmo poema que continua (...) essas repetições, essas variantes ínfimas, esses cortes, esses recuos, podem dar lugar a modificações — embora mal perceptíveis — que, com o tempo, acabam se afastando muito do ponto de partida”.
Mas é chegado o momento em que o clímax se aproxima. Ou não. Quando o “casal” de protagonistas ruma à cidade em uma viagem — o que também se repete — e não retornam no tempo esperado, nós, juntamente com o narrador, ficamos os esperando, dentro da casa, dos arredores. Só temos acesso ao espaço, aquilo que circula seu olhar.
Nessa espera, fica sugerido um possível acidente, algum imbróglio, porém, nada acontece. Eles retornam e a explicação pela demora não faz com que a narrativa chegue a avançar, ela se mantém suspensa. Nós esperamos e nada acontece. Podemos pensar novamente no cinema de Hawks, aproximando as personagens deste livro aos do cinema dele, são, como o próprio Hawks declarou (sobre seus próprios personagens), “simplesmente pessoas normais; não agem como herói ou heroína”.
É novamente o próprio narrador quem parece responder a essas questões: “O escritório está assim mergulhado numa luz difusa que tira todo o relevo das coisas. As linhas são, porém, bem nítidas, mas a sucessão de planos não dá mais nenhuma impressão de profundidade”.
Tudo é, mas nada é. Apenas os seres, as coisas, a luz, a sombra. O dia nascendo naquela casa, aqueles arredores, seus sons, suas rotinas. Vemos e nada concluímos, não chegamos a algum lugar, apenas ficamos onde começamos. Eis este romance, um romance à altura do olhar.