spoiler visualizarRonaldo Thomé 18/04/2022
"Então me domine/Devagar e suavemente"(...)
Nossa... Sem palavras! Anaïs Nin leva você dos céus ao inferno nesse petardo, é possível imaginar a cara de espanto das pessoas ao lê-la, em plenos anos 70 e 80, por exemplo.
A autora francesa conviveu e se formou no ambiente literário da Europa do pós-guerra. Travou amizade (e um caso) com Henry Miller, escritor e intelectual americano. Ela conta em seu prefácio que, após ser abordada por um colecionador obcecado, passou a escrever diversas histórias eróticas (sendo que sua visão conflitava com a do cliente).
Ainda bem, porque Delta de Vênus, para todos os defeitos, é um livro poderosamente imersivo. A obra possui 15 contos bem variáveis, em que a obsessão amorosa e sexual chega às últimas consequências.
São contos vividos principalmente por mulheres, na maioria francesas, cuja ambientação remete à Belle Epoque (embora eu tenha pensado se encaixarem muito também nos anos 70 e 80). No geral, debatem as aventuras românticas e sexuais dessas pessoas.
Algo MUITO acertado nessa obra é a forma como a autora constrói histórias dentro de histórias. Quase como numa estrutura em abismo, os contos são narrados e a história de cada personagem é abordada em algum momento, o que faz com que entendamos melhor por que agem de certa maneira (o que traz realismo, ao mesmo tempo que torna o trabalho mais onírico). Esse recurso, somado a uma descrição apurada e sinestésica dos ambientes, das roupas e dos sentimentos de êxtase dos personagens, fazem com que você se sinta quase dentro da história. Você vai se pegar em muitos momentos pensando naqueles becos, nos quartos escuros, nos cafés e casas de chá da Paris antiga, sentindo muitas vezes os odores dos perfumes, sentindo os lençóis e cortinas de seda - e o que mais você quiser sentir...
Anaïs Nin usa seu talento na escrita para dar vida a inúmeras situações que se baseiam em fantasias, taras e parafilias.
Um aviso importante: ao contrário de livros atuais, cuja pegada costuma ser mais açucarada e romântica, a presente obra pode ser indigesta e até repulsiva.
Isso inclui inúmeros encontros sexuais fortuitos, descrições de sexo oral, vaginal, anal, o flerte com o sadomasoquismo, até extremos (pedofilia, abuso sexual e até zoofilia). A questão aqui é que a autora usa um tom imparcial em suas descrições, o que com certeza poderá chocar ou ofender pessoas mais sensíveis.
Em favor do livro, entretanto, é preciso admitir que Anaïs Nin NÃO passa a impressão que essas coisas são aceitáveis - ela apenas as mostra como aconteciam (e acontecem). Pessoalmente, acho que livros como Capitães da Areia, por exemplo, passam uma impressão muito pior ao colocar seus heróis como agressores sexuais, inclusive de menores, enquanto alguns personagens que Anaïs Nin criou são descritos claramente como abusivos e cruéis com suas mulheres. Ainda assim, esses momentos realmente são perturbadores e cabe a cada um julgar como preferir. De longe, meu conto preferido é "Artistas e Modelos", que nos põe de cara com questões atuais - os limites da arte e pornografia, o lesbianismo, o hermafroditismo - seguido do também excelente "Elena", para mim o conto mais completo e detalhado.
Recomendado para: é uma obra especial, carregada de anacronismo, mas que sobreviveu ao tempo e nos lembra que o sexo e a mente humana nem sempre reservam boas surpresas. Vá de mente aberta e tire suas conclusões.
Nota: 9,0 de 10.
Dica: leia ouvindo isto: https://youtu.be/oiYdMjilvQ8