Lucio 01/07/2020
Lavelle ecoa Agostinho
RESUMO GERAL: Lavelle propõe uma guerra contra o amor-próprio que nos impede de nos conhecer e de conhecer o mundo. Nos conhecemos pela interioridade iluminada por Deus, que nos revela nossos limites e finitude, pela qual nos ultrapassamos nos unindo a Deus e, então, nos lança à realização de nós mesmos na vocação pela qual construímos nossa vida no mundo e, assim, participamos da criação cósmica. Igualmente pela união com Deus - não uma união panteísta, diga-se passagem - podemos nos conectar em amor aos homens e nessa comunhão iluminada elevar amante e amado. Nota-se que tais atos cognitivos empregam a razão, que é corrompida pelo amor-próprio para fugir do real e produzir o engano em prol de si mesma. É preciso, pois, renunciar-se para alcançar o mundo das ideias e nele arranjar as ideias numa teoria, motivado pelo amor a Deus, que dirige nossa vida - trabalho que os sábios, principalmente por seus bons livros, nos ajudam a fazer. Nossas ações, dessa forma, são inseridas no ato maior que é a vontade de Deus e que flui no mundo. Dessa forma, vivemos de forma feliz contentes com o que nos é dado pela Providência, encarando todas as coisas à luz da eternidade, ao invés de sermos dominados pelo amor-próprio que idolatra as coisas temporais e é arrastada em perene insatisfação. Tudo que nos cabe fazer, portanto, é confiar em Deus e ter o espírito atento às ‘vocatio mundi’ que nos conecta à vontade de Deus nas ações do dia a dia, experimentando a vida normal com um significado totalmente novo e conseguindo o contentamento pleno, que nos escapa em qualquer alternativa.
ARCABOUÇO TEÓRICO: Lavelle não é de citar muitos autores nesta obra. Está lidando claramente com problemas ideias filosóficas de vários pensadores antigos, modernos e contemporâneos, mas poucas são as citações. Vemos aqui e acolá os nomes de Descartes, Spinoza e Pascal. A influência de Platão é inegável, mas não é explicitada. E ele claramente lida com questões da filosofia crítica, abrindo velado diálogo com pelo menos Kant e Hegel. Menciona os românticos, que certamente influenciam sua visão da vida trágica fundamentada no amor-próprio - os chama claramente de iludidos. Menciona negativamente os estóicos, mas mostra clara influência de algumas de suas reflexões ao falar de viver o presente e se submeter a uma certa razão do mundo. Finalmente, o tema do conhecimento de si e de Deus parece iluminado pela filosofia agostiniana, seja ecoada em Pascal ou, quiçá, Calvino, seja em diálogo direto.
RECOMENDAÇÃO: O livro não é para principiantes. A linguagem é belíssima, e é justamente aí que reside a dificuldade para discernir os pensamentos do autor. Está prenhe de conceitos filosóficos elevados e exige um nível de abstração e conexão de ideias semelhante ao que é demandado pela leitura dos filósofos mais difíceis, como Kant, Hegel, Husserl, Heidegger, Van Til e Dooyeweerd. No entanto, todo analista da alma humana se beneficiará com o esforço para compreender esse formidável filósofo.
AVALIAÇÃO CRÍTICA: Lavelle parece dar pouco espaço para a reflexão a respeito do tema da ressurreição. Sua teoria do além mundo parece platônica e anti-corporalista. Talvez a ideia do ato que subsume as ações conectando-as à realidade seja inspiração hegeliana, mas poderia ser ainda mais potencializada pela noção de Reino de Deus. O conhecimento de Cristo, o perdão dos pecados e outros temas caros ao cristianismo, que bem poderiam estar em franco diálogo, só estão sugeridos e, não raro, omitidos. E a explicitação dos filósofos com quem está dialogando e de quem toma os conceitos certamente tornariam a leitura mais fluida e o texto mais rico. Felizmente, a impressão panteísta é corrigida mais ao final da obra, mas em muitas colocações precedentes temos essa impressão. Ele também se redime de um tipo de platonismo anti-corporal ao menos no que diz respeito a esta vida, o que também nos fez apreciar ainda mais seu pensamento. No geral, no entanto, a despeito desses problemas, tornou-se uma obra de referência para o nosso pensamento e certamente será aproveitada pelo resto da vida, pois harmoniza-se em muitos pontos às reflexões agostinianas que dominam e dominarão nossas pesquisas no mínimo pelos próximos anos - para não dizer ‘pelo resto da vida’.
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Segue, abaixo, um resumo o mais breve possível de capítulo por capítulo.
CAPÍTULO 1: A CONSCIÊNCIA DE SI: A consciência - distinta do corpo e do espírito - distingue o ego do Todo, e tenta uni-lo novamente, mas se angustia em não o poder fazer, vendo que tal tarefa só se dá em Deus. Unir-se ao mundo é ampliar a consciência para abrangê-lo, e nos abranger enquanto objetos no mundo, conhecendo-nos por espelho, compreendendo nosso papel no mundo e o verdadeiro valor das coisas, e nos criando no exercício dos poderes, nos realizando desta maneira.
CAPÍTULO 2: O CONHECIMENTO: Descobrimos a verdade graças às luzes lançadas sobre nós que, como o sol, não é ela mesma iluminada, i. e., conhecida. Deus lança essas luzes. O conhecimento começa pelos sentidos - sendo a visão e audição os principais - despertando a inteligência que, então, os guia. Se formos tomados pelo amor-próprio, iremos distorcer o conhecimento. Somos movidos a conhecer pelos afetos, cujo maior é o da realização na comunhão com o real, e quando somos movidos pelo amor-próprio usamos da dialética por pura vaidade, chegando a distorcer o real. A razão, pois, que é o meio de acessar as coisas reais, deve ser guiada por algo superior. O conhecimento, pois, não deve submeter o mundo, mas elevá-lo para que o empreguemos em e por amor aos entes - o que inclui o conhecimento de nós mesmos e a integração de nós ao mundo segundo nossas potências.
CAPÍTULO 3: O NASCIMENTO DAS IDEIAS: Temos controle não dos pensamentos, mas da atenção - o abrir-se à ‘vocatio mundi’ - e ela deve se dirigir mansamente às ideias que se lhe darem, e amadurecê-las, não as abandonando até tê-las explorado por completo, sendo flexível às suas conexões - principalmente aquela ideia amiúde oculta que atravessa nossa vida, explorando a consciência ao máximo e nos conectando ao real, sendo legitimamente abandonada somente se este a pressioná-la. Evidencia-se um equilíbrio de atenção ao mundo e às ideias. A atenção é movida pela intenção, que é potencializada dentro duma maior, sendo a da piedade a superior e que catalisa a atenção para o Todo. Uma inspiração pode nos dar visões ainda mais profundas do mundo, por meio do acesso, pelas palavras, ao mundo espiritual, o mundo mais real das ideias. Por iniciativa, o descobrimos na vivência que visa dar significado ao mundo, e nele descobrimos quem somos e nosso telos. Encontrando-se as ideias, é preciso colher as melhores para compor nosso pensamento.
CAPÍTULO 4: A MENSAGEM DO ESCRITOR: A boa escrita serve para cristalizar e viabilizar os acessos ao mundo eterno pelas experiências, abstraindo-lhes os acidentes, transcendendo sua ocasião - sendo mais profunda do que a fala, não tendo a distração do outro corporal. Os momentos são descontínuos, onde o arranjo teórico se faz necessário. Estabelece um diálogo profundo consigo e com o outro - e este último a torna prolífera, onde se encontra a crítica, que deve ser recebida como colaboração, e o elogio, que pode inflar o ego. Os grandes autores, o gênio, inclusive, são alvo de grande inveja, e sua vida comum é o meio para tentar desmerecê-los - quando, na verdade, é nela que suas qualidades interiores se manifestam -, mas sua morte consagrar sua escrita. Seja como for, cumprem com sua vocação por estar atentos ao dado. Temos nós que fazer o mesmo e discerni-la para explorarmos nosso potencial e nos realizarmos no mundo.
CAPÍTULO 5: A ATIVIDADE: Pela atividade pura superamos o amor-próprio pela construção do mundo, de nossa realidade e de nós. Essa ação pura é perspicaz - notando as nuances e ajudando com os detalhes da execução -, forte - determinada, unificando-nos internamente, moderada - para conter os impulsos sensíveis - e nos coloca no fluxo do cosmos, sendo vinculada à nossa vocação pela atividade comum - que fundamenta as excepcionais e, à luz do conhecimento de si e de Deus, são a fonte dos maiores bens. Com efeito, é a vaidade ou a Providência que nos ocupa com o que não é nossa vocação. E o mesmo amor-próprio gera a distração, pela qual se evade do presente, produto da falha do espírito de se fixar nalguma coisa eterna que ilumina o mais simples e gera o verdadeiro lazer, que é uma atividade satisfatória, regeneradora, despreocupada e oposta também à ociosidade.
CAPÍTULO 6: O CONSENTIMENTO: É preciso que a vontade, que tem o papel de resistir ou conceder, se submeta, negando o amor-próprio, ao fluxo cósmico, atentando-se com perspicácia e prontidão à ação demandada pelo presente, fora da qual tudo se desvaloriza, e que se insere num ato que a envolve, antecede e a ultrapassa - a vontade de Deus -, onde se alcança liberdade e identidade na colaboração criativa, bem como a vincula à eternidade e sublima até o cotidiano, logrando contentamento real. O corpo, com a alma neste fluxo e o espírito agindo sobre si, refletido na matéria, é o instrumento para nos comunicarmos e para criarmos o mundo. A ação pura, vinculada ao ato, que não se prende à finalidade - esta é uma demanda do amor-próprio - é o que ansiamos para a vida feliz ao invés da mera paz inerte ou fruição irracional. O ato perfeito se dá na passividade pura, que pretere os reclames do amor-próprio e se abre para a ‘vocatio mundi’. O ato procede de uma contemplação e gera um produto pelo qual outra contemplação surge e assim por diante, e tudo isso na vida normal sublimada.
CAPÍTULO 7: AMOR-PRÓPRIO E SINCERIDADE: Ao olharmos para nós vemos nossos limites, que estreitam nossas alegrias e nos prende ao ser separado, perdendo o amor. Indo para fora, renunciando-nos, sob iluminação divina, alcançamos amor, conhecimento de si (descobrindo-nos e construindo-nos) e de Deus, e união ao Todo. Pelo amor-próprio nos comparamos aos outros em relação a bens menores, e surge inveja e ressentimento. Também nos distraímos com o passado e o futuro. Perdemos, assim, a doação do presente. A atividade inibe o amor-próprio, mas ele se envaidece nas realizações e se vitimiza nos fracassos. Interessa-lhe, porém, a renúncia que o leva ao amor a Deus, pois é para si prejuízo. Ele nasce da dualidade, mas ela também traz a luz que abrange o ego e o mundo. A sinceridade pode, pela atenção, despertar o mal, mas atenta ao certo, gera a condição para a empatia que se dá no amor, pelo qual penetramos o outro não para descobrir sua miséria, mas para encorajar a superação de si, e fora do qual revelamos só o que agrada, e isso possibilidade a mentira. Deus, porém, vê tudo, e os puros vivem ‘coram Deo’, sendo autênticos sempre, enquanto os falsos tentam enganar até mesmo a si, sem sucesso - pois sabem-se atuando e provam sua competência julgando o outro.
CAPÍTULO 8: SOLIDÃO E COMUNHÃO: A solidão oriunda da decepção com o mundo pode carregar, fomentar ou germinar o amor-próprio, que embarga os bens buscados aí. Deve se renunciar na solidão, e formar uma sociedade consigo e com Deus carregada para o mundo para o transformar, e que gera comunhão - pois fora dessa condição somos um fardo para nós e reproduzimos essa relação conosco no outro. Assim, a espiritualidade não está no enclausurar-se, antes apenas começa aí para calar as solicitações externas, encontrar a Deus e as próprias potencialidades vocacionais. Se não houver receptividade, reciprocidade e sinceridade, não há comunhão - gera-se até mais solidão. Um deve ser para o outro uma mediação para, mediante iluminação divina, o elevar, e isso só se dá longe do amor-próprio. Tal comunhão se dá mediante a participação comum num mesmo objeto de amor e conhecimento, que deve ser elevado o bastante para viabilizar esse ultrapassamento, sendo Deus o objeto máximo para nos levar à comunhão com o Todo.
CAPÍTULO 9: O AMOR: O amor, que produz real satisfação, é um consentimento integral, que não consulta e até surpreende a consciência e abala a vontade, que só resiste pelo amor-próprio. A vontade o serve e o auxilia, mas não o supera por ele ser visceral. Nos cabe preparar o coração para vir amores dignos para a vontade. Não é vivido quando não acolhido. Evolui progressivamente. Nasce e se sustenta pela contemplação ideal imaginada do objeto, que se afasta para nos manter anelantes e não cegos pelo hábito. Está em perene conflito com o amor-próprio, compartilhando seu princípio e o levando ao fim ou à maturidade. A forma mais pobre é a corporal, que se opõe ao espírito que nos une ao mundo no fluxo cósmico, à parte da idolatria - que fenece na posse gerando tédio, fadiga e aversão. O amor aperfeiçoa o amante e o amado. Nos vincula tão intimamente que nos faz conhecer mesmo os pensamentos internos do outro. Possuímos as coisas pela apreensão espiritual de sua ideia, que a constitui, como possuímos o passado por sua abstração profunda ou como amamos alguém com um amor invariável ou tal como quando ela morre. Mas o amor só se satisfaz com a presença real do amado em harmonia com o fluxo cósmico, com Deus. Nele, revelamos o outro, criando-o, e nos descobrimos, criando-nos. Precisamos encontrar um objeto digno para o amor que nos guie e nos ultrapasse, e Deus é este objeto por excelência, nos levando ao amor ao Todo. Devemos o amor devido às coisas, e as amamos mais à luz do todo. O amor dá o sentido à vida e nos entrega ao mundo sem nos dissolver nele.
CAPÍTULO 10: O TEMPO: O tempo é o meio que Deus nos deu para nos criarmos no presente, em contato esvaecente com o eterno e conectado ao passado e futuro, pelos quais nos tornamos miseráveis se nos aprisionam. O passado nos delimita mas nos dá uma posse espiritual da criação e gravidade à vida, bem como fundamenta o agora e nossos desígnios; e o futuro expressa o que nos falta e nos insere na criação do mundo e na responsabilidade de nos constituirmos livremente na síntese do nosso destino e do destino do mundo - de modo que só vivendo no presente podemos salvaguardá-lo. A atividade sob o ato nos mantém satisfeitos no fluxo cósmico do presente e fora do tempo, e quando ela declina surge o impasse entre desejos e acontecimentos - a vivência temporal do amor-próprio. Para a alegria, temos que nos harmonizar ao ritmo do mundo - o que é se dá em união com Deus - e abstrair o essencial dos acidentes no transcurso do tempo, não impondo o nosso ritmo, pois isso só gera tédio ou impaciência. Mesmo nas ideias, fora do seu ritmo perdemos o real. Mas o homem que se fecha para o presente busca evasivas do real pela imaginação do futuro e do passado, ou mesmo sobrecarregando o presente.
CAPÍTULO 11: A MORTE: A morte dá seriedade à vida ao mostrar que as ações têm valor perene, e perder isso de vista nos faz perder a vida. A vida séria transcende o transitório nos fazendo apreciar o dado, conectando-nos ao eterno, e nos preparando para a morte ao considerá-la para o ser separado, nos dando a imortalidade, nos fazendo superar o amor-próprio - a fonte do temor à morte - e alcançar o estado superior a ser confirmado, não destruído, pela morte. Não é um consentimento à morte pelos desgostos do temporal. Os amantes da vida, que vivem á luz do impulso da herança espiritual dos mortos, julgam que a posse que têm se estenderá no além, e familiarizados com a morte se despojam do temporal e guardam o vínculo ao mundo espiritual que buscam - e que será aperfeiçoado na morte apenas para estes.
CAPÍTULO 12: OS BENS DO ESPÍRITO: O espírito individual está imerso no Universal. A alma é mediadora entre o corpo e o espírito, e a consciência nasce dessa oposição, devendo ouvir o espírito para ser feliz, pois nos leva a nos conhecer em relação ao fluxo cósmico, fora do qual nos aprisionamos no amor-próprio, perdendo a nós e ao mundo. É preciso, pois, migrar para o espírito por meio da reflexão que leva ao consentimento e ao ultrapassar-se, recuperando e superando, pelo amor e conhecimento, a unidade perdida pela consciência que gera o amor-próprio ao aprofundá-la. Mas tal elevação sofre quedas pelo apego ao material. Temos que fruir os bens corporais cientes de que imitam os espirituais, e os espirituais pela renúncia de si e compartilhamento, e nos desapegar dos bens para nos apossar de nós mesmos e dos bens internos. Assim vive o espiritual, que preenche a alma da verdade que ilumina e sublima os atos. Mas para isso precisa do estado de graça, que está no nosso interior e se manifesta nas dificuldades, e que não pode ser forçado, mas aguardado e aproveitado em seus efeitos.