Nathaniel.Figueire 09/03/2015Costumo achar que troca de roteirista e artista em revista mensal de história em quadrinhos resulta em lambança. Isso poderia ser especialmente verdade no caso de "A Saga do Monstro do Pântano", em que Alan Moore (roteiro), Stephen Bisette e John Totleben (arte) tiveram que assumir um arco inacabado (e meio embromado) deixado para trás por Martin Pasko (roteiro) e Tom Yeates (arte).
A nova equipe amarrou tudo que estava acontecendo anteriormente em "Pontas Soltas" (Saga do Monstro do Pântano 20). Achei legal a Panini seguir a edição dos Estados Unidos e inserir esse número no encadernado, até para ver como Moore "resolveu" as pendengas anteriores do Pantanoso.
Então, em "Lição de Anatomia" (Saga do Monstro do Pântano 21) Moore, Bisette e Totleben mostraram para que vieram. E não era para fazer lambança, mas sim revolucionar as histórias quadrinhos nos Estados Unidos.
Primeiro, o roteiro. Acho que eu nunca li nada tão ousado em um revista mensal quanto o que foi feito nessa história. Partindo de uma autopsia, Moore deu um "reboot" no personagem, desconstruindo-o em pedaços para ao poucos remodelar totalmente seu conceito (que até então já era consagrado). De um médico geneticamente modificado para uma forma vegetal que pegou emprestada a unidade de uma consciência humana para tomar forma há não só uma mudança, mas a marca da audácia de Moore de refazer o conceito central do personagem, criados por míticos Bein Wein e Bernie Wrigthson, para construir uma versão completamente diferente da anterior.
O texto de Moore é denso, recheado de metáforas (algumas bem ruins, diga-se de passagem...). Geralmente prefiro que uma história em quadrinhos mostre mais em imagens e narra menos "em off", mas no caso de Monstro do Pântano o texto sempre acrescenta novos elementos à imagem. Prestem atenção: as narrações dos quadros sempre dizem mais do que as imagens a elas associadas. É um casamento entre texto e imagem em que ambas se complementam mas, ao mesmo tempo, se expandem para além de seus limites, deixando diversas sugestões para leitor imaginar.
E a arte de Bisette e Totleben é linda demais. Acho ótimo a maneira como eles dispõem os quadros para contar a história e nisso eles só foram melhorando ao longo da série (e copiados largamente posteriormente). O estilo, carregado de traços e sombras escuras, remete aquelas histórias de terror estilo "House of Mystery" (de onde Monstro do Pântano surgiu), "Creepy", "Contos da Cripta" e tantas outras que me acompanharam no início da adolescência. E as cores de Tatjana Wood são um show a parte, especialmente no caso da escolha do papel para esse encadernado, o 'pisa brite', muito criticado por fãs brasileiros, mas que eu gostei, pois dá um clima todo vintage para a leitura.
"Lição de anatomia" carrega o tom da fase Moore de Monstro do Pântano: uma história de terror onde o tema da monstruosidade, do sobrenatural e do medo são centrais.
Enfim, se o primeiro arco que segue "Lição de Anatomia" não é TÃO legal, com o Pantanoso combatendo o alucinado Florêncio/Woodrue, acho que ainda assim ele figura entre minhas histórias favoritas do Monstro do Pântano, pois é nela que se insere a ideia do Verde, uma espécie de consciência coletiva de todas as plantas da terra com a qual o Verdão está em sintonia. O Verde é psicodelia pura com a arte de Bisette e Totleben, onde os limites dos quadros se borram e se misturam. Novamente, as cores de Wood são metade da beleza do Verde, o que denúncia o crime que foi aqueles encadernados da Pixel em que essas histórias foram impressas em preto e branco...
A piração da representação do Verde em Monstro do Pântano é visível em diversas histórias em quadrinhos posteriores: nas lisergias simbólicas de Jaime Delano em "Hellblazer", na magia do kaos de Grant Morrison em "Os Invisíveis", no Sonhar de Neil Gaiman em "Sandman". Exemplos que demonstram a influência de Monstro do Pântano da fase Moore não só em nível temático, mas também (e, na minha opinião, principalmente) em nível formal.
O arco posterior, em torno do Rei Macaco, serve mais para aprofundar a personagem Abby Arcane. Ainda que eu tenha gostado (ela é uma personagem muito importante na revista), achei que nesse arco o Verdão não fez diferença nenhuma, só serviu para "porrar"... Pouco ou nada acrescentou para aprofundar a psicologia do protagonista da revista, a não ser na conclusão: "monstros também sentem medo"... Ainda assim, é uma bela história de terror e uma homenagem "bonitinha" ao mestre Jack Kirby.
Para finalizar, arrisco-me a um paralelo musical: "A Saga do Monstro do Pântano' da fase Moore está para as histórias em quadrinhos como o álbum "Sabotage" do Black Sabbath está para o rock pesado. Tudo que você vê/escuta posteriormente nesses gêneros aparecem, de alguma forma, nessa obras originais. Esses encadernados lançados pela Panini são edição obrigatória na estante de qualquer fã de quadrinhos não só pela ótima história, mas por tudo que ela significou de mudança dentro do gênero no mercado dos Estados Unidos e pelos ótimos filhos que ela gerou e gera até hoje.