Pires 03/07/2014
História social do conhecimento e inteligência coletiva
“Uma História Social do Conhecimento – de Gutenberg a Diderot”, de Peter Burke (Rio de Janeiro, Zahar, 2003), é incrivelmente curto para o tema que aborda: 180 páginas, excluindo-se lista de referências e índice remissivo. Duvida-se da possibilidade de algo sério e consistente, sobre tema tão amplo e complexo, fazendo uso de tão poucas páginas. Mas, “Este estudo se baseia em quarenta anos de estudo dos primeiros textos modernos, bem como em obras secundárias”, informa o autor no prefácio. O que vai se comprovando na medida em que se lê. Peter Burke faz uma síntese muito competente e clara da evolução histórica do “mundo das letras” ocidental, traçando alguns rápidos paralelos com o que aconteceu na China, no Japão e no mundo islâmico, evitando entrar em detalhes específicos, sem deixar de remeter o leitor às obras onde estes podem ser encontrados. As numerosíssimas fontes são apresentadas em notas de fim de texto, revelando a erudição que fundamenta o texto curto, mas consistente, cuja principal qualidade é oferecer uma visão panorâmica do objeto, captando-lhe as principais características e tendências. Autores como Foucault, Thomas Kuhn, Eduard Said e Pierre Bourdieu comparecem abundantemente como referências argumentativas relevantes na caracterização do processo inovador da aquisição e disseminação do conhecimento, no período que vai da invenção da imprensa à publicação da famosa Enciclopédia, pelos iluministas franceses.
A leitura é muito agradável, seja pela fluidez do texto, seja pelo prazer de ver se completar, à medida em que se avança nas páginas, um quebra-cabeças em que as peças - às vezes coloridas, às vezes brancas, à vezes negras - são a comunidade dos “homens de letras”, a universidade, as “capitais do conhecimento”, os currículos, as bibliotecas, as enciclopédias, a Igreja e o Estado em sua relação com o conhecimento (fonte de poder), o “mercado do saber”, o leitor. Também é prazeroso adquirir uma percepção minuciosa dos séculos XVI, XVII e XVIII, sob o enfoque da antropologia, da sociologia e da economia do conhecimento, que trazem à baila instituições e indivíduos até hoje muito presentes na vida de todos, pelo papel revolucionário que tiveram, configurando o mundo dos livros, das bibliotecas, dos estudos, das universidades.
“Uma História Social do Conhecimento” é uma obra oportuníssima, neste momento histórico em que os homens dos livros estão se tornando os homens das telas de computadores. É muito interessante lê-lo depois de “A inteligência coletiva”, de Pierre Lévy, em que o tema é, exatamente, o impacto das tecnologias da informação sobre as possibilidades de aprendizado e de manejo do saber. A internet e a atual capacidade quase infinita de armazenamento e processamento de informações estão para a sociedade atual como a imprensa, as enciclopédias e as bibliotecas estiveram para o mundo do fim da Idade Média e começo da Idade Moderna. Em ambos os casos os modos de produzir, armazenar e acessar informações e lidar com o conhecimento sofreram transformações profundas, com impactos sobre a vida dos indivíduos e comunidades. Com a diferença de que a revolução recente ainda está por ser compreendida em toda sua extensão e profundidade, aparecendo Pierre Lévy como um otimista.
E cá, fico me perguntando: como seria uma história social do conhecimento pós-Enciclopédia? E na era da internet? Enquanto Peter Burke ou alguém tão corajoso e empreendedor como ele não dá a resposta, relerei “Uma História Social do Conhecimento – de Gutenberg a Diderot” e “A inteligência coletiva”, a fim de refletir pelo menos sobre algumas tendências que marcarão a comunidade privilegiada a que pertenço: a dos homens de letras. Comunidade esta que anda um tanto perdida e marcada por conturbações que ninguém sabe, ainda, aonde chegarão.