spoiler visualizarDavid.Saraiva 23/08/2018
E então Tarita lança ao vento de fogo as cinzas de Marlon Brando, que voam para o inferno. No ar, é pesada a melancolia...(Melhor biografia que li ate o final)
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Gritos e sussurros
“O chefão é Laurence Olivier”, decreta Coppola. Vinte, trinta diretores foram convidados
a levar para o cinema um livro — que ainda não é um best-seller — de Mario Puzo. O
escritor, jogador compulsivo e eternamente falido, decidiu adaptar a estrutura de uma
tragédia grega ao mundo da Máfia — sobre o qual nada sabe. A aposta dá certo: logo ao
ser lançado, em 1969, O poderoso chefão é considerado uma radiografia perfeita da Cosa
Nostra, embora Puzo tenha inventado tudo.
Laurence Olivier recusa o papel. George C. Scott, que acaba de receber um
Oscar por Patton, também. Coppola volta-se para Brando. O ator está com 48 anos —
não tem ainda a idade necessária para o papel — e, como sempre, tergiversa. Coppola
insiste. O diretor tem apenas 31 anos, mas uma ambição feroz.
A produção hesita em contratar Al Pacino? Coppola se enfurece. Ninguém se
entusiasma com a ideia de contratar Brando? Coppola simula uma crise cardíaca.
Finalmente, a Paramount aceita, com três condições: que Brando aceite fazer testes (o que
é humilhante); que concorde com um salário modesto (pelo bem da economia); que seja
multado caso comece com seus caprichos (pelo bem da prudência).
Quando Brando aparece para os testes, maquiado, com as bochechas cheias de
enchimento e com uma dentadura falsa, ninguém o reconhece. Ele entra na pele de Don
Corleone com uma facilidade incrível. E, para variar, trabalha. Ouve as gravações de
Frank Costello. Observa que esse chefão da família Genovese nunca eleva a voz, pois,explica, “quando se tem a verdadeira autoridade, não é necessário gritar”. Além disso,
Brando decide procurar mafiosos de verdade. Janta com eles, imita seu sotaque, bebe
vinho italiano, observa suas mulheres, faz mimo com os bebês. No set, aparece com um
gato. Todo mundo fica encantado: mas então é este o astro metido a besta, o
insuportável, o neurótico? Como reconhecer nesse ator disciplinado o sabichão de O
grande motim?
A explicação é que sua reputação está em cacarecos, e sua conta bancária, no
vermelho. Brando precisa se reconstituir com urgência.
As primeiras semanas de filmagem são febris: Coppola precisa firmar sua
credibilidade. Sua maneira de trabalhar não é exatamente a mais apreciada pelos estúdios.
Ele muda o cronograma de filmagem, reescreve os diálogos, dá preferência a planos
rápidos na cena do baile, parece caótico, joga com as cenas, propõe dez ideias ao mesmo
tempo. Ao cabo de três semanas, Coppola ouve uma conversa entre técnicos no
banheiro:
— Esse cara não sabe o que está fazendo.
— É um vale-tudo.
— Além do mais, não vai conseguir montar essa bagunça toda.
Quarenta anos depois, Coppola ainda se lembra do choque: “Era como se me
tivessem enterrado uma faca no coração.”
Os produtores querem substituí-lo. Por quem? Por Elia Kazan.
Brando interfere: “Se Coppola for dispensado, eu me vou.”
Coppola fica.
Não demora, e vem para Brando a recaída: ele espalha lembretes por toda parte,
na palma da mão, na gola, numa parede, numa gaveta. Inventa. Sugere, assim, começar a
brincar com uma rosa depois de um ato de violência. Bebe vinho em seu jardim. Acaricia
o gato sobre os joelhos. Os outros atores, James Caan, Robert Duvall, Al Pacino, são
pura admiração. Brando chega a ajudar o maquiador a criar um novo rosto: o látex que
seca em suas bochechas forma as rugas de um homem de 65 anos. Insere solas de
chumbo nos sapatos para criar um andar mais pesado. Põe tampões de cera nos ouvidos
para abafar os ruídos. Mesmo fora do set, continua falando com a voz do chefão, uma
voz abafada, rouca, sussurrada. Quando se sente sufocado pela deferência que cerca o
personagem de Don Corleone, incomodado pelo respeito dos outros atores, recorre a
um de seus velhos truques: deixa cair as calças e mostra sua outra face.
O clima logo volta a se animar.
Os italianos estão preocupados. Os mafiosos também. Mas como? Esse filme é
contra nós? A Máfia não existe. Nós somos pessoas honestas e pacíficas. Não existe
nenhum chefão, nenhum capo di tutti i capi, nem pistoleiros ou capangas. E, por sinal,
se continuarem fazendo o filme, vamos provar que somos bonzinhos. Alguém vaiaparecer com sapatos de cimento... É assim que a mensagem da loja dos Filhos da Itália
chega à produção. Para deixar as coisas bem claras, os carros dos executivos da
Paramount são crivados de balas. Frank Sinatra insulta Mario Puzo. Finalmente, alguns
ítalo-americanos são contratados. E ficam maravilhados por estar tão perto de Brando,
Deus Pai. As ameaças são esquecidas. Alguns trocados são doados para o fundo de
caridade da Famiglia, para contribuir para a felicidade dos filhos carentes dos
importadores de azeite de oliva.