spoiler visualizarJulia4515 26/03/2021
"A vida pode recomeçar se você tiver sorte o suficiente, e eu decidi ter sorte."
As irmãs Hephzi e Rebecca foram educadas em casa pela mãe, uma sombra submissa ao marido que permite às filhas as mais absurdas torturas. Isoladas de tudo e de todos, até entrarem no ensino médio, onde finalmente tiveram a chance de ter uma vida social. Seus pais achavam que não precisavam do mundo exterior ou de qualquer coisa que viesse dele. Eles não gostavam que as pessoas visitassem as meninas. Não eram super protetores, eram justamente o contrário, eram doentes, cruéis e sinceros, como leitora e ser humano, não reconheci em nenhum dos hábitos desta família o sentimento que deveria reger um lar: o amor.
As meninas estão privadas de banho, boa comida e carinho também, as roupas que vestem são o resto de doações que nem seriam usadas para o pano de chão. Quando adoecem, seja de gripe ou após espancamento do pai, por algum motivo ou sem motivo aparente, raramente ou nunca fazem uso de remédios, condenando-as a penosas noites de insônia até que se curem por conta própria.
A rotina de Hehpzi e Rebecca se baseia em servir, limpar e esfregar a casa paroquial onde seu pai prega fervorosamente a palavra de Deus e é admirado por dezenas de fiéis que nem imaginam as lágrimas que acontecem sob o teto do pastor assim que a porta é aberta. Roderick, o pai das meninas se sente o próprio Deus, condenando ações e atitudes e fazendo listas de pecados. Se Hephzi e Rebecca fossem questionados sobre os princípios obscuros de sua fé, que se repetiam como mantras, e não soubessem as respostas ou ousassem contar a alguém o que estavam passando, elas estariam em apuros... Diante de tudo isso elas são levadas a não acreditar em Deus, afinal ele nunca veio para salvá-las.
Hpehzi era o cimento de tijolos que mantinha a família intacta, fazia Roderick rir e se orgulhar de sua beleza, de sua bela voz. Ela sempre dirigia e Rebecca a seguia, calma e sem opinião sobre o futuro, enquanto Hephzi martelava a vontade de liberdade. Elas eram gêmeas não idênticas e em todos os aspectos possíveis eram diferentes. Rebecca sofre de Síndrome de Treacher Collins, seus ossos faciais não se formaram corretamente e ela está um pouco diferente. Vista como uma aberração até pela irmã, ela é excluída e ignorada sempre que possível.
Ao ler essa história, meu coração permaneceu em minhas mãos, do começo ao fim, não houve um capítulo em que eu não estivesse apreensiva ou com pena das meninas. Tantas atitudes desumanas e temores em cada ponto da narrativa me fizeram esperar com todas as minhas forças um desfecho feliz para ambas. A princípio sabemos que Hephzi morreu, o que dá uma carga emocional imensa à obra, a seguir seus capítulos foram muito tristes. Ela se envolve com um menino, Craig, obviamente escondido, e encontra nele a chance de ser livre, de deixar tudo para trás, toda a dor, todo o amor preso finalmente solto, disponível. Ela faz amigos e vivencia, ainda que por pouco tempo, o que é ser adolescente, arrisca-se e abusa da sorte.
O mistério que cerca sua morte vai até pouco antes do desfecho, onde segredos sobre seus pais e sobre Rebecca são revelados, uma enxurrada de declarações emocionais que surpreendem. A narrativa se intercala, Rebecca narra o presente, a vida após a morte de sua irmã, o mar perigoso e violento que é sua vida, ameaçando afogá-la a qualquer momento, é aí que percebemos o quanto ela parece inferior, quão perigoso é ela não se importar consigo mesma? Nas narrações de Hephzi, acompanharemos as mudanças que ocorreram na vida das meninas desde o seu ingresso na escola e tudo o que culminou em sua morte. Na segunda parte do livro, Rebecca é responsável não só pela narração, mas também pela chance de ser uma pessoa corajosa, de agir, de se libertar, de ser superior, de poder, de se afastar das ruínas do passado.
É um enredo maravilhoso com um desfecho digno, apesar de tudo. Não me culpe por desejar um fim banhado em vingança diabólica, infelizmente não chega a tanto, mas é satisfatório. Leitura favorita!