Lista de Livros 30/04/2018
Lista de Livros: Contra-história do Liberalismo
Parte I:
“A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do séc. XIX”. O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo de poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Grã-Bretanha é a que possui o maior número de escravos (878.000). Não há nada de óbvio nesse dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a Espanha segue a muita distância. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000 escravos e que na verdade é uma espécie de semicolônia da Grã-Bretanha: boa parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acaba em Londres. Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo pela sua posição absolutamente eminente é o país que está ao mesmo tempo na frente do movimento liberal e que conquistou o seu primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente a partir da Revolução Gloriosa. Por outro lado, é o próprio Pitt, o jovem, quem em sua intervenção em abril de 1792 na Câmara dos Comuns sobre o tema da escravidão e do tráfico dos negros, reconhece que “nenhuma nação na Europa [...] está tão profundamente mergulhada nessa culpa como a Grã Bretanha”.”
*
Mais em:
http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2018/04/contra-historia-do-liberalismo-parte-i.html
*
Parte II:
“Como sabemos, o primeiro a contrapor liberdade e igualdade e a denunciar a reivindicação da igualdade política como um ataque à liberdade foi Barnave, que também é um defensor da escravidão. Esse instituto continua vivo e vital nos Estados Unidos no momento em que, diante da França devorada pela paixão da igualdade, Tocqueville aponta como país modelo do amor pela liberdade, juntamente com a Inglaterra, exatamente a república do outro lado do Atlântico. Mas, justamente aqui, pelos teóricos do Sul, a escravidão é justificada e até celebrada como instrumento para garantir, ao lado da liberdade, também a igualdade dos membros da comunidade branca. Para confirmar o caráter problemático da contraposição liberdade/igualdade poderia ser mencionado o Tocqueville anterior a 48, que acusa a Inglaterra de ter uma concepção errada da liberdade, enquanto fundada sobre o “privilégio” (e sobre a desigualdade), e que atribui à revolução francesa o mérito de ter promovido, em nome da igualdade, a causa da abolição da escravidão e da liberdade dos negros. Nesse momento, longe de estar em contraposição, liberdade e igualdade resultam em plena sintonia.
A contraposição reapresenta-se, de maneira sensivelmente diferente, em outro importante expoente da tradição liberal. Em Bentham podemos ler: “Quando a segurança e a igualdade estão em conflito, não se deve hesitar um instante: deve perder a igualdade”. Exatamente no país indicado por Tocqueville como modelo, pela sua capacidade de compreender a absoluta prioridade do valor da liberdade, observamos que a reafirmação absoluta do valor subordinado da igualdade acontece em primeiro lugar em nome da “segurança” da sociedade e da ordem existente.
A esta altura convém analisar mais amplamente a profissão de fé individualista dos liberais do século XIX. Sobretudo depois do ‘48, na esteira da luta contra a massificação contestada no socialismo, eles parecem às vezes considerar o individualismo como uma realidade pré-moderna, infelizmente dissipada no decorrer dos sucessivos desdobramentos históricos. Nas palavras de John S. Mill, “Na antiguidade, na Idade Média, e, em medida decrescente, durante a longa transição do feudalismo à sociedade hodierna, o indivíduo constituía um poder em si”; não se dissolvia na “multidão” e nas “massas”. Também Tocqueville homenageia o “individualismo da Idade Média”. Claramente, ele não leva em consideração o destino dos servos da gleba, assim como não considera a sorte dos escravos e dos negros em geral, quando aponta os Estados Unidos como o país no qual “todo indivíduo” goza de uma “independência” sem precedentes. Quando, depois, afirma que na Argélia colonizada “o papel do indivíduo é por toda parte maior do que na pátria-mãe”, Tocqueville não leva em consideração os árabes que, como ele mesmo reconhece, são muitas vezes assimilados a “bestas maléficas”.
Emerge assim o caráter bastante problemático do pathos do indivíduo, que é a bandeira agitada pelo liberalismo dedicado a contrastar radicalismo e socialismo. Quem é mais individualista, Toussaint Louverture, o grande protagonista da revolução dos escravos ou Calhoun o grande teórico estadunidense do Sul escravista? Quem dá prova de respeito pela dignidade do indivíduo enquanto tal é o jacobino negro que, levando à sério a Declaração dos direitos do homem, considera inadmissível em qualquer caso a redução de um homem a objeto de “propriedade” de um seu semelhante; ou é Jefferson, que reprime as suas dúvidas sobre a escravidão a partir da convicção da superioridade dos brancos e da preocupação de não colocar em perigo a paz e a estabilidade do Sul e da União? Quem expressa melhor o individualismo, John S. Mill e os seus seguidores em terra inglesa ou francesa, que consideram benéfica e necessária a subjugação e até a escravidão (mesmo se temporária) dos povos coloniais, ou aqueles franceses que começam a colocar em discussão o despotismo colonial enquanto tal (“Morram as colônias se elas nos devessem custar a honra, a liberdade”)?”
*
Mais em:
http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2018/04/contra-historia-do-liberalismo-parte-ii.html
*
Parte III:
“Em primeiro lugar, não se deve esquecer que os clássicos da tradição liberal não apenas falam com frieza, hostilidade e às vezes com aberto desprezo da democracia, mas consideram o seu advento como uma ruptura arbitrária e intolerável do pacto social e, portanto, como uma causa legítima de “apelo ao céu” (nas palavras de Locke), isto é, às armas.
Em segundo lugar, deve ser levado em consideração que as cláusulas de exclusão foram superadas não de forma indolor, mas por meio de convulsões violentas e às vezes de violência inaudita.
A abolição da escravidão na esteira da guerra de secessão custou aos Estados Unidos mais vítimas do que a soma dos dois conflitos mundiais. No tocante a discriminação censitária, para o seu cancelamento deu uma contribuição decisiva o ciclo revolucionário francês. Enfim, em grandes países como a Rússia, a Alemanha, os Estados Unidos o acesso das mulheres aos direitos políticos tem atrás de si as convulsões bélicas e revolucionárias do início do século XX.
Em terceiro lugar, além de não ser indolor, o processo histórico culminado no advento da democracia não é absolutamente linear. À emancipação, isto é, à aquisição de direitos anteriormente não reconhecidos e não gozados, pode muito bem se seguir uma desemancipação, ou uma privação dos direitos dos quais os excluídos haviam arrancado o reconhecimento e o gozo. Afirmado na França na trilha da revolução de fevereiro de 1848, o sufrágio universal (masculino) é cancelado dois anos depois pela burguesia liberal, e logo depois é reintroduzido em decorrência não de um processo de amadurecimento do liberalismo mas do golpe de Estado de Luís Napoleão, do qual se serve para a encenação do rito da aclamação plebiscitária. Nesse âmbito o exemplo mais clamoroso nos é fornecido pelos Estados Unidos. O fim da guerra de Secessão inaugura o período mais feliz na história dos afro-americanos, os quais agora conquistam os direitos civis e políticos e passam a fazer parte dos organismos representativos. Mas, trata-se de uma espécie de breve intervalo da tragédia. O compromisso que ocorre em 1877 entre brancos do Norte e do Sul comporta para os negros a perda dos direitos políticos e, muitas vezes dos próprios direitos civis, como é testemunhado pelo regime de segregação racial e pela violência selvagem dos pogrom e dos linchamentos. Essa fase de desemancipação, que se desenvolve no âmbito de uma sociedade que continua a se autodefinir “liberal”, dura quase um século.
Existe depois uma quarta razão. O processo de emancipação muitas vezes tem tido um impulso totalmente externo ao mundo liberal. Não se pode compreender a abolição da escravidão nas colônias inglesas sem a revolução negra de Santo Domingo, vista com horror, e muitas vezes combatida, pelo mundo liberal no seu conjunto. Aproximadamente trinta anos depois o instituto da escravidão é cancelado também nos Estados Unidos, mas sabemos que os abolicionistas mais fervorosos são acusados pelos seus adversários de serem influenciados ou contagiados por ideias francesas e jacobinas. À breve experiência de democracia multirracial segue-se uma longa fase de desemancipação marcada por uma terrorista supremacia branca. Quando acontece o momento da virada? Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justiça envia para a Corte Suprema, empenhada em discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água para a propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas a respeito da intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Washington — observa o historiador americano que reconstrói esse acontecimento — corria o perigo de perder as “raças de cor” não apenas no Oriente e no Terceiro Mundo, mas no próprio coração dos Estados Unidos: aqui também a propaganda comunista alcançava um sucesso considerável na sua tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, provocando neles o desmoronamento da “fé nas instituições americanas”. Observando bem, o que coloca em crise antes a escravidão e depois o regime terrorista de supremacia branca são respectivamente a revolta de Santo Domingo e a revolução de outubro. A afirmação de um princípio essencial, se não do liberalismo, pelo menos da democracia liberal (no sentido hodierno do termo), não pode ser pensada sem a contribuição decisiva dos dois capítulos da história mais odiados pela cultura liberal da época.
Enfim, a quinta e última razão, a mais importante de todas. Refiro-me ao entrelaçamento entre emancipação e desemancipação que caracteriza cada etapa do processo de superação das cláusulas de exclusão que caracterizam a tradição liberal. Nos Estados Unidos o desaparecimento da discriminação censitária e a afirmação do princípio de igualdade política são favorecidos pela contenção quantitativa e pela neutralização política e social das “classes perigosas”, graças à expropriação e deportação dos índios (que por muito tempo permite alargar a classe dos proprietários de terra) e à escravização dos negros; na Europa a expansão do sufrágio no século XIX vai de mãos dadas com a expansão colonial e com a imposição do trabalho forçado contra os povos ou as “raças” consideradas bárbaras ou de menor idade. Esse entrelaçamento às vezes apresenta-se de maneira abertamente trágica. Objeto de humilhações, discriminações e persecuções de todo tipo no Sul, os afro-americanos procuram conquistar o reconhecimento participando em primeira linha nas guerras da União. Acontece então que em alguns ambientes começa a se homenagear a coragem demonstrada pelos soldados de cor na batalha das Wounded Knees. Quer dizer, a esperança de emancipação dos negros passa, é obrigada a passar, pela sua participação ativa no aniquilamento dos peles-vermelhas! (...)
E, no entanto, por difícil que possa ser essa operação para os que estão empenhados em superar as cláusulas de exclusão do liberalismo, assumir a herança dessa tradição de pensamento é uma tarefa absolutamente inescapável. Por outro lado, os méritos do liberalismo são importantes e evidentes demais para que haja necessidade de atribuir-lhe outros, totalmente imaginários. Faz parte desses últimos a presumida capacidade espontânea de autocorreção que frequentemente lhe é atribuída. Se partirmos desse pressuposto, torna-se totalmente inexplicável a tragédia em primeiro lugar dos povos submetidos à escravidão ou semiescravidão, ou deportados, dizimados e eliminados; trata-se de uma tragédia, que longe de ser impedida ou bloqueada pelo mundo liberal, se desenvolveu em estreita conexão com ele. Inconsistente no plano historiográfico, a hagiografia usual é também um insulto à memória das vítimas. Em contraposição às difundidas remoções e transfigurações o livro que agora chega ao final apresenta-se como uma “contra-história”: dizer adeus à hagiografia é a condição preliminar para desembarcar no terreno da história.”
*
Mais em:
site: http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2018/04/contra-historia-do-liberalismo-parte.html