Diego Cardoso 05/06/2015A maior derrapada da rainha do gótico!A rainha do gótico está de volta. Anne Rice volta às suas origens e retoma com um romance sobrenatural. Desta vez, os vampiros saíram de cena, dando lugar aos lobisomens. Entretanto, ao que parece, o período em que se manteve afastada do sobrenatural para se dedicar à livros de temática cristã, deixou a rainha um tanto enferrujada.
Na costa da Carolina do Norte, o jovem jornalista Reuben Golding prepara uma reportagem sobre a enorme propriedade do desaparecido Felix Nideck e acaba se envolvendo com a herdeira Marchent Nideck. Após algumas horas na mansão, porém, Reuben é atacado por uma criatura e se vê transformado em um lobisomem. Reuben acaba se tornando uma espécie de herói na cidade quando decide usar suas novas habilidades para ajudar as pessoas, mas seu heroísmo controverso não dura muito, pois ele precisa se esconder da polícia, dos médicos e de sua própria família. Reuben precisa aprender a lidar com suas novas habilidades, antes que seu dom se torne um problema ainda maior.
Em A Dádiva do Lobo, Anne Rice recria toda a mitologia dos lobisomens. A começar pelo fato do personagem preferir ser chamado de Lobo Homem e não de lobisomem. A forma como surgiram os “lobos homens” também foi renovada e ficou até bastante interessante. Aqui, o lobo homem não depende de uma fase lunar para se transformar, e, quando na forma lupina, mantém seus pensamentos e raciocínio. E não adiantam balas de prata, pois aqui elas não são capazes de deter um Lobisomem.
Até aqui nada de diferente no que diz respeito a Anne Rice. É sabido e notório para quem já leu algo da autora antes que ela sempre reinventa de forma coerente as mitologias. Em A Dádiva do Lobo não é diferente. Com maestria, Rice recriou toda a mitologia e a fez ter sentido. Os fãs mais ortodoxos dos licantropos talvez não se sintam tão satisfeitos, mas de fato, a proposta da autora foi extremamente feliz.
Rice coloca seu protagonista na posição de anti herói, que, na forma lupina, consegue distinguir através do cheiro, os bons dos inocentes, o que o leva a caçar apenas bandidos e malfeitores. Noite após noite, ele se transforma e sai às ruas de São Francisco, atraído pelas vozes daqueles que se encontram em perigo mortal e se torna um super herói, salvando vidas e estraçalhando agressores.
Agora você deve estar se perguntando o motivo de eu ter afirmado que Anne Rice estava enferrujada. Bom, diferentemente de suas obras anteriores, onde você se sente preso ao livro, de tão intrigante e envolvente a trama desenvolvida, em A Dádiva do Lobo, Anne Rice nos coloca em uma montanha russa literária, onde temos momentos extremamente estimulantes, que nos leva a querer devorar mais e mais páginas, e outros em que a trama fica tão arrastada e desinteressante que nos leva praticamente ao cochilo.
Antes que haja uma enxurrada de comentários rechaçando minhas palavras, justificando que a lentidão da trama é algo comum nos trabalhos de Rice, especialmente por ela ser bastante detalhista em suas descrições, deixo claro que não é a isso que me refiro quando digo que a trama se arrasta em vários momentos. As descrições detalhadas da autora já me são habituais e, normalmente, acrescentam muito à narrativa. Neste livro, não é diferente. A forma precisa com que Anne Rice descreve, sob o ponto de vista do protagonista, cada transformação sofrida e morte executada, nos coloca também sob a visão de Reuben. A descrição nos leva a sentir o que ele também sente. Isso é fenomenal, e um dos grandes atributos literários de Rice.
A questão da monotonia de certas partes da trama se encontra justamente nos momentos em que, aparentemente a autora ficou, como diriam no popular, “enchendo linguiça”; talvez um artifício para rechear mais a trama e fazer um livro maior. Mas é justamente essa “encheção de linguiça” que faz o livro ficar monótono em certas partes e que pode cansar um pouco o leitor; ou mesmo fazê-lo desistir da leitura. Mas não é apenas isso.
Algo que me chamou a atenção e, pelo que andei lendo por ai, também a de outros leitores, foi um momento extremamente surreal que encontramos no livro. Parece absurdo falar sobre surrealidade quando estamos discutindo um livro sobrenatural, mas essa passagem ultrapassa os limites do aceitável, especialmente quando estamos falando de Anne Rice, uma autora de larga experiência literária.
Em um dado momento do livro, Reuben, transformado, está na floresta e encontra uma mulher. Ela não sente medo, o convida para sua casa e eles fazem sexo. Simples assim. Esse é o momento em que você fecha o livro e revê a capa, só para ter certeza que está, de fato, lendo Anne Rice e não Stephenie Meyer. Não que Anne Rice seja uma santa no quesito “respeito às origens mitológicas dos seres do submundo”, mas, diferentemente de Meyer (e como eu já havia dito acima), Rice sabe como desconstruir um mito e reconstruí-lo com maestria para não ser questionada. Entretanto, com essa passagem, ela realmente chegou ao fundo do poço crepuscular! A moça, tal qual Bella Swan, se apaixona perdidamente pelo seu lobinho (e não vampirinho, como na obra de Meyer – se bem que… enfim, melhor deixar quieto. Foco!) e larga tudo para ficar com ele, perdidamente apaixonada; assim, na mais absoluta normalidade.
De certa forma, acho natural que um autor derrape em algo dentro de um livro. Nem sempre é possível acertar totalmente o gosto do leitor e é claro que uma autora do nível de Anne Rice, cria muito mais expectativas por seu estilo e resultado do que um autor iniciante ou que detém apenas um grande sucesso na bagagem. Certamente outros leitores podem ter uma opinião divergente da minha sobre os pontos levantados, o que também é natural, pois é importante observar todos os pontos de vista. O fato é que, com ou sem ferrugem, o estilo de Anne Rice não foi perdido, mesmo com o longo ostracismo sobrenatural de sua carreira literária. Os que resistem às passagens cansativas e ao momento de surrealismo crepuscular da floresta, são brindados com desfecho espetacular e arrebatador, do modo peculiar que somente Anne Rice sabe conduzir. Recomendo que saboreiem essa trama, livre de preconceitos. Quem sabe, ao final, você também poderá agradecer pela Dádiva do Lobo (e isso fará total sentido para você, depois de ler este livro!).
site:
http://programadescontrolados.com.br/?resenhas=resenha-a-dadiva-do-lobo