Ricardo Rocha 06/07/2011
Uma escritora – raramente essa afirmação terá tamanho grau de verdade como quando em relação a ela – se dando ao prazer de descobrir novos caminhos de desenvolver sua vocação, essa é Virginia Woolf em Mrs. Dalloway. Um erro não pequeno é atribuir a Joyce e Faulkner juntamente com ela, a primazia do uso dos monólogos interiores em fluxos de consciência. Na verdade, ela lista poderá crescer a quase o infinito se acrescentarmos Edouard Dujardin, George Eliot, Schinitzler, Katherine Mansfield, Claude Simon, Duras, Cabrera Infante, Lezama Lima e mais recentemente Nadine Gordimer e Amos Oz, para ficar nos mais conhecidos. Porém, o fluxo interior de Virginia é diferente, essencial, é quase que o único autêntico entre todos. Respeita as regras. Isso é importante na medida e que, por exemplo, o neologismo, por mais consagrado que venha a ser, ainda é uma ousadia que deu certo (quando dá). Um ato de rebeldia, digamos, mas uma rebeldia sem comprometimento com nada exceto a rebeldia em si, passos numa terra de ninguém. Que, como uma revolução, podem ser apropriados depois pelos próprios ícones do sistema antigo de poder.
Quando Claude Simon – escritor maravilhosamente criativo, aliás – começa um parágrafo com letra minúscula, ele está indo por um outro caminho, retirando-se de mundo familiar para outros, a que num primeiro momento só você, o líder da revolução, teve acesso. Quando Joyce retira a pontuação em Ulisses, isso será ou amado ou odiado ou ignorado, mas com certeza ninguém aprende isso na escola, nem os que amaram nem os que odiaram. Isso quer dizer o quê? Em resumo, que é uma revolução fácil. Ou quando alguns escritores hoje falam deus, referindo a Deus, com letra minúscula. Podem ter as razões mais fundamentadas, mas Deus continuará imune a elas. Como “risco de morte”. Alguém em algum momento decidiu no conforto de seu gabinete que a expressão “risco de vida” estava errada. Tem suas razões. É risco de perder a vida, portanto há uma elipse e a expressão literal seria o que é perder a vida, ou seja, morte. Mas aí, vem o senso comum, em cumplicidade com o Tempo, e, quando algum deus (assim mesmo, pequenino) diz hoje “risco de morte” causa uma comoção nos ouvintes, que nem sabem que há ou não uma elipse mas que cresceram entendendo perfeitamente o que era risco de vida. Pode dar certo ou não e amanhã todo mundo escreverá sem pontuação ou começando parágrafos com minúsculas. Mas, hoje, é uma ousadia fácil.
Virgínia Woolf escolheu a revolução árdua e todavia a mais simples, isto é, obedecendo as leis da escrita, revoluciona-las. Não usa artifícios gráficos (como os itálicos de Faulkner, que é preciso ser expert para compreender logo que entram no flash-back), não usa neologismos, não abre mão completamente do “pensou ela” etc; e, graças a isso, muita gente hoje pode fazer essas coisas e ser compreendido, pois houve um precedente que a um tempo foi muito à frente de seu tempo sem todavia recusar o que o pessoal anterior deixou como legado.
Pois em Senhora Dalloway há de tudo, flash-back, fragmentação, fluxos no estilo Molly, parágrafos que poderiam estar em minúscula como em Flandres, e inclusive esse deus. E todavia respeita todas as vírgulas e os parêntesis. Você pode ler Virgínia e detestar ou amar, mas com certeza, se depender de suas aulas de português (ou inglês, naturalmente, se for o caso) irá entender. Porque o fluxo interior vai passando de um para outro personagem sem deixar de ser, em última análise, não o foco de cada um, mas o do próprio romance.
Claro, isso não é uma análise literária, mas a análise de um leitor que vê beleza na delicadeza de como se faz a coisa, e não se agrada quando as coisas são ríspidas, bruscas. Saramago consagrou o diálogo no meio de um mesmo parágrafo baseado em vírgula-maiscula. De novo, você pode amar essa forma de representar um diálogo ou odiá-la, mas não deixará rapidamente de entender que é esse o uso, ao longo de algumas páginas de Memorial do Convento você já entendeu que é assim, em vez do tradicional parágrafo-travessão. Mas pelo amor de Deus, quantos filhos de Deus ao lerem Ulisses e o monólogo de Molly sabem o que significa a ausência de pontuação (porque naturalmente há de significar alguma coisa). O próprio Claude Simon se utiliza de uma forma que pega bem para o leitor que sou: “lembro que durante a noite geara e Wack entrou no quarto levando café e dizendo Os cães comeram a lama”. Ou seja, dizendo-dois-pontos-aspas-Os-cães. Há uma elipse, um ganho narrativo, ainda que sim haja a rigor uma transgressão, mas não violento, não arrogante, simplesmente saiu o “dois-pontos-aspas-ou-travessão” e soa bem. Ah, sim, “bem” é subjetivo, e não tenho outra pretensão além de falar por mim mesmo, apenas. Preceitos à Harold Bloom, para quem tudo gira em torno de Shakespeare e Poe é “lamentável”, aqui, estão fora. É só uma opinião, mas na acepção da palavra, diz respeito a mim mesmo – mas um “eu mesmo” que ama literatura e é um ótimo leitor e péssimo formador de opinião.
Voltando, a senhora Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores e lá vai ela, altaneira, soberba, sendo admirada pelo homem que a vê, vendo ela própria o céu de Londres e ouvindo – agora – o som do relógio, lembrando-se das frases estranhas de Peter, e por pouco não cruzando pela loucura de Septimus – lá vai ela, sentindo o tapa de uma onda, o ar fresco que entra pela janela, vai, na direção de um dos textos mais perfeitos da literatura universal – com todas as vírgulas, maiúsculas, parêntesis e aspas a que ela tem direito...