Maitan 18/02/2018
As camadas mais profundas
Olhe um pouco mais. Olhe melhor. É preciso repetir esse mantra ao ler e reler Nelson Rodrigues. Pergunte-se sobre quantas obras já leu (e de quantas páginas) que sintetizem com tamanha precisão o entrelaçamento das realidades consciente e inconsciente, do profano e do sagrado, do pecado e da moral. Um texto que, apesar de sua amistosa aparência, com seus recursos cômicos, suas situações risíveis – e por vezes absurdas –, aponta para as camadas mais profundas da realidade, para aquele lugar onde governam a negação, a interdição e a vergonha, e para o qual o único cobertor ao alcance seja aquilo que se chama de esperança. Esperança como um fardo: a fé de que esse oceano de horror deságue no grande ralo da moralidade.
Talvez seja complicado mensurar essas dimensões sem estar diante de um monstro, ou da monstruosidade do reconhecimento (tal como Édipo, que será relido nessa peça de Nelson, em páginas e personagens modernas). Temos o costume de nos defrontar – e não por vontade própria – com obras que, em geral, não atravessam. Nelson Rodrigues denomina sua peça Os sete gatinhos de “divina comédia em três atos e quatro quadros”, o que, a princípio, pelo eco do monumento dantesco, já nos mostra sua ambição de atravessar. Estou falando das camadas que revestem a nossa realidade, pelo prisma dos sistemas moral e social que nos acometem quase que mitologicamente.
Mas, avancemos com calma, vamos nos situar com relação ao enredo. Dessa vez, a roupagem sugere a superficialidade, pede para que esqueçamos a grandiosidade do destino, dos mitos freudianos e da densidade por vezes obscura das primeiras obras de Nelson Rodrigues. Em Os sete gatinhos, estamos diante de uma família suburbana em uma narrativa elaborada em função de uma ordem realista, feita para gerar a sensação de que estamos de fato diante de um fato (sem os apelos da fantasia, do sonho ou do delírio). Pois se existe algo que aprendemos em relação à arte e à vida, é que esta pode ser inverossímil, aquela não. Mas deixemo-nos envolver pelo enredo.
São sete personas no núcleo da peça: “Seu” Noronha, pai da família e contínuo (espécie de ajudante geral) na Câmara dos Deputados; D. Aracy, sua esposa (ou Gorda, como carinhosamente a chama o marido), que compensa o não desejo do esposo desenhando obscenidades nas paredes do banheiro; as quatro filhas maiores, que não casaram, Aurora, Arlete, Débora e Hilda; e a filha mais nova, de 15 anos, Silene, a quem a família se dedica, juntando dinheiro, para comprar um enxoval e casá-la, salvando assim a última esperança de uma família já estigmatizada pelo fracasso e a prostituição. As relações e expectativas básicas são essas.
Uma observação para quem leu Álbum de Família: Silene, para o pai Noronha, é vista como a pureza infinita, a “última virgem”, como era vista Glorinha pelo pai Jonas em Álbum de família (as meninas têm, inclusive, a mesma idade). “Seu” Noronha, entretanto, é muito mais brutalizado que Jonas, lembrando aquele machão sem muita habilidade intelectual que vê na filha a epítome da castidade.
Acontece que a menina, estudante de colégio interno, acaba voltando para casa no meio da semana devido à misteriosa morte de uma gata, que, já morta a pauladas, dá à luz sete gatinhos. Se tudo até então transcorria na maior banalidade do mundo, é aí que se dá o tão aguardado nó górdio da peça, e não devo dizer mais sobre o enredo.
Sábato Magaldi, no prefácio à peça, diferencia o caráter psicologizante das personagens anteriores de Nelson Rodrigues em comparação às personagens expressionistas de Os sete gatinhos. O que as define, aqui, não é sua profundidade esférica, mas a luz – o algo externo – que as ilumina cena a cena. E esse farol é o problema comum a toda a família e aos personagens circundantes: a moralidade.
A partir do nó até o fim do último quadro, o que se vê é a escavação involuntária do terreno sobre o qual germina a ordem social – o que começa na família, no seio da família, transborda para a vizinhança, transformando-se em problema universal. As conexões entre os operadores desse grande nó são da ordem mais elevada, ainda que se manifestem pelo que reputado como baixo e vil. Amor, justiça, dignidade, prazer e espiritualidade – fenômenos da ordem do sagrado – são manifestados como prostituição, submissão, violência física, pobreza material, sede de vingança e morte.
Nelson Rodrigues lança mão também de contradições simbólicas para enriquecer a obra e revesti-la ainda mais com todo seu talento dramatúrgico, e isso desde o título, com o cabalístico sete. Na peça Macbeth, de Shakespeare, o protagonista só seria derrubado quando um bosque marchasse contra ele, e nenhum homem nascido de mulher poderia acertá-lo. Em Os sete gatinhos, temos o homem vestido de virgem, aquele que andava armado porque o disseram que seria morto por uma prostituta; há o espírito antigo e familiar, que interferem no mundo dos vivos por comunicação mediúnica; entre tantos outros elementos, o principal: o homem que chora por um olho só.
Para Paulo Mendes Campos, Os sete gatinhos é finalmente a melhor peça de Nelson Rodrigues. Sendo a melhor ou não, é o tipo de obra que se deve ler desarmado e reler com atenção. Olhar de novo. Olhar melhor. Porque lá no fundo há um outro fundo. Como diria a poeta Wislawa Szymborska, o mais importante é o sexto ato, quando a cortina fecha: a mão invisível que aparece na única fresta e lhe aperta a garganta.