Cassio Kendi 26/02/2023
Sábado - Fizemos a trilha do Saco das Bananas, em Ubatuba. Foi bem cansativo, umas seis ou sete praias, e entre cada uma delas era uma subida e uma descida em terreno irregular. O guia nos mostrou algumas plantas locais que a gente podia comer, e instruiu também de onde podíamos beber água.
Domingo - tive caganeira de noite. Maldito guia, acho que deve ter sido a água daquela biqueira. Outras pessoas do grupo tiveram também, então com certeza foi isso, porque nem todo mundo estava comendo as plantas. Sorte que voltei mais cedo, se não teria me cagado na estrada.
Segunda - acordei e senti o tornozelo meio estranho. Liguei a luz e surpresa: estava o dobro do tamanho normal. "Parece um tornozelo de elefante", pensei. Quando andava, tinha a sensação de quando a perna está dormindo, foi bem desconfortável. Só aí que fui perceber a quantidade de picadas no local, umas vinte de cada lado, sem exagero. Não tinha passado repelente no tornozelo, e fiz trilha com meia baixa. Na hora, nem senti nada, mas parece que todas as picadas decidiram se juntar e fazer o efeito sincronizadas. Espero que passe logo, amanhã tenho um vôo longo pra pegar.
Terça - Não passou, ainda está difícil de andar. Mas deu tudo certo. Encontrei um casal de Joinville na conexão em Angola, tínhamos combinado pelo Facebook de dividir os custos de um 4x4 para viajar pela Namíbia. Falei do tornozelo, eles disseram que era tranquilo, primeiros dias seriam mais no carro mesmo.
Quarta - finalmente estou andando normal. Alugamos o carro com duas tendas em cima junto com um cara de Florianópolis. Passamos no mercado pra pegar umas coisas pra comer, e chegamos no primeiro camping. O casal ficou numa barraca, eu e o Floripa em outra. Não dormi quase nada, ele roncava alto demais, e a barraca era apertada. Era como se ele gritasse no meu ouvido.
Quinta - mal dormido, fui descer da barraca pela escada embutida e, desastre, rasguei a pele debaixo do dedão. Começou a sangrar, joguei uma água, e perguntei se alguém tinha kit de primeiros socorros pra fazer um curativo. Ninguém tinha. Perguntamos pros guardas do safári se tinha uma farmácia por perto, eles disseram que não, mas que havia um hospital não muito longe dali. Fomos para onde ele indicou, e parecia uma casa meio abandonada. Batemos na porta por um tempo, demos a volta no terreno e batemos palmas, até uma senhora vir ter conosco. Acho que ela não falava inglês, porque não disse uma palavra, só olhou pro machucado e fez sinal para que a seguissemos. Entrei numa sala com armários de vidro, sentei na cama, ela passou uma pasta que lembrava um melaço na ferida, e envolveu o dedão com uma bandagem. Me deu uns comprimidos (entendi que eram antibióticos), e mostrou a imagem de um sol e uma lua (entendi que era pra tomar um de dia e um de noite). Falou o preço, 50 dólares. 50 dólares, meu deus! Mas eram 50 dólares namíbianos, dava menos de 5 dólares americanos. Paguei satisfeito, e a ferida parou de arder
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Vi o filme "Na Natureza Selvagem" (Into the Wild, em inglês) muito antes de saber que era baseado em um livro. As cenas do filme são em grande parte lindas e inspiradoras, tanto as de natureza, quanto as de conversas. Toda vez que assisto, me dá vontade de pegar uma mochila e sair viajando.
Mas entendo que a realidade é bem mais, por falta de uma palavra melhor, realista. Meu relato acima é exemplo das possíveis dificuldades que podem acontecer em uma viagem: doença, caganeira, picada, machucado, tudo no espaço de uma semana. E esses são sofrimentos bem pequenos se comparados ao que Chris McCandless passou em sua aventura pelo Alaska, como frio, fome, solidão e exaustão, o que aumenta minha admiração pelo que ele buscava alcançar.
Um dos temas centrais do livro é justamente se Chris é passivo dessa admiração, ou era apenas um moleque despreparado e prepotente que foi tentar algo muito maior do que as próprias capacidades; se ele tinha esse direito de sair viajando sem dar notícias, ou se era insensível ao sofrimento de seus próprios pais devido à sua ausência. Não é uma discussão com resposta certa, porque cada um traz um pouco de si quando vai julgar a vida de alguém, mas chega a ser irônico que uma pessoa que tinha como ideal viver sozinha na natureza, isolada da sociedade por um tempo, acabe se tornando tão popular pos-mortem com um filme/livro. Não acho que Chris tenha imaginado que sua vida se tornaria conhecida por tanta gente, e, pela descrição dele no livro, acredito que até tentaria evitar isso.
Naquele velho debate de filme x livro, aqui realmente não vejo um melhor, porque os escopos são bem diferentes. O livro é muito mais documental, não segue uma ordem cronológica clara, e mostra vários pontos de vista sobre a vida de Chris, com base em depoimentos de familiares, amigos e pessoas que cruzaram seu caminho durante seus quase três anos de andarilho. Já o filme tem começo, meio e fim definidos, sempre acompanhando a vida de Chris, quase como se fosse em primeira pessoa.
Para quem gosta ou sonha em viajar por vários lugares, minha recomendação seria ver primeiro o filme para se inspirar, depois ler o livro para ficar mais prudente, e depois ver o filme para se inspirar de novo e não ser tão prudente assim.
ps: outro filme com cenas bem inspiradoras de viagem é Walter Mitty, que se passa na maior parte na Islândia.
ps2: Um texto muito bom sobre filmes com essa linha narrativa geral de "pessoa que vai buscar o que quer na vida e se ferra por isso" é esse: www.papodehomem.com.br/elogio-ao-rebelde/