Lucas1806 19/07/2023
Um romance trágico, uma ode ao humanismo do novo século.
"O crime do Padre Amaro" é talvez o livro mais polêmico de Eça de Queirós. Publicado em 1875, gerou controvérsia entre o clero, devido a seu teor subversivo e questionador dos dogmas religiosos vigentes.
A história gira em torno de Amaro, um jovem convencido a se tornar padre contra sua vontade, que torna-se pároco da pacata cidade de Leiria. O grande conflito moral surge quando Amaro e a jovem Amélia apaixonam-se mutuamente, paixão essa que entra em conflito com o celibato obrigatório dos sacerdotes católicos.
Durante extensas passagens, Eça de Queirós utiliza determinados personagens como porta-voz de suas próprias opiniões a respeito do embate entre a moral religiosa e a razão. Apela para o racionalismo humanista, a construção de uma moral laicista surgida principalmente durante o Iluminismo. Escancara a hipocrisia dos setores mais conservadores da sociedade de sua época, mostrando mesmo os que se julgam incorruptíveis e moralmente superiores não estão imunes a sentimentos e instintos inatos à natureza humana.
Entretanto, longe de um panegírico ao ateísmo, o romance mostra certas opiniões favoráveis a fé cristã - como nos monólogos internos do trágico heroi João Eduardo, crítico contumaz do clero conservador, mas admirador do Jesus histórico, o amigo dos pobres e desafortuados. O abade Ferrão, consolo de uma deprimida Amélia, representa o bom sacerdote, defensor de um Deus misericordioso, paternal e acolhedor, em contraposição ao Deus vingativo e autoritário remanescente do período medieval.
Ao final do romance, são mostradas representações das mudanças sociais que ocorriam na época - rumores sobre a Comuna de Paris, os movimentos socialistas da classe operária, o sufragismo, e o anseio da nova geração por um Estado laico, racionalista, sem interferência da Igreja. Em termos de enredo, o romance termina com um gosto amargo na boca, mas em plano de fundo, no melhor estilo narrativo do realismo, é deixada uma nota de esperança. De maneira sardônica, os clérigos prestam reverência ao velho mundo e suas intolerâncias inflexíveis, ao mesmo tempo em que as mudanças agitam o tecido social e os raios de um novo amanhecer despontam no horizonte, prenunciando a renovação e vinda de um novo ciclo da História.