jota 03/11/2020BOM (uma autora da Era do Jazz, multitalentosa e desbocada)Não existe nenhuma edição americana de Big Loira e Outras Histórias de Nova York que tivesse dado origem a essa edição brasileira (Companhia das Letras, 1994, 3ª. reimpressão) que tenho em mãos. Os vinte contos do volume foram selecionados e traduzidos por Ruy Castro, que também apresentou Dorothy Parker (1893-1967) ao leitor brasileiro, inédita por aqui em livro próprio. No prefácio, Crises de choro, ou, de preferência, risos, ele explica que coletou os textos em The Portable Dorothy Parker, edição da Viking Press de 1944, que reúne toda sua produção literária. São histórias que foram publicadas em diversas revistas americanas de grande prestígio: Vanity Fair, The New Yorker e Esquire. A partir de 1930 Parker passou a escrever roteiros para Hollywood e assinou vários filmes em colaboração com outros autores.
Dentre eles, alguns sucessos de crítica e bilheteria, como Nasce Uma Estrela (1937 e refilmagem em 1954) e O Sabotador (1942, direção de Alfred Hitchcock). Também escreveu poemas e compôs a letra de várias canções, sendo talvez a mais famosa I Wished on The Moon (parceria com Ralph Rainger), gravada por inúmeros artistas, dentre eles a grande Billie Holiday. A maioria dos textos de Big Loira é do tempo em que Parker viveu em Nova York e frequentava um famoso círculo que reunia escritores, jornalistas, editores, intelectuais, enfim. Castro acredita que foram desses encontros que surgiram várias pérolas ditas por Parker (algumas reproduzidas no prefácio), uma especialista em diálogos afiados e precisos, outra de suas marcas. Esses intelectuais amigos de Parker eram conhecidos como os membros da Mesa Redonda do (Hotel) Algonquin.
Mesmo sendo uma escritora altamente interessante, Parker não ganhou em seu tempo a mesma projeção de outras autoras contemporâneas, como Virgina Woolf (1882-1941) ou Gertrude Stein (1874-1946), mas era admirada por gente como F. Scott Fitzgerald, Edmund Wilson, W. Somerset Maugham, apenas para citar alguns escritores bastante conhecidos. Do mesmo modo que os de Fitzgerald, seus textos ficaram para sempre associados à era do jazz (anos 1920 e 1930), e ela, por sua irreverência ficou conhecida como o “Mark Twain de saias.” Alexander Woollcott, crítico do The New Yorker, definiu Dorothy Parker como “uma mistura de Chapeuzinho Vermelho com lady Macbeth”. Quer dizer, ela podia ser suave e ferina ao mesmo tempo, empregar alguns palavrões ou ironias entremeados com doces frases trocadas entre namorados ou amantes, personagens de seus textos. Não consta em nenhum dos contos selecionados, mas uma frase famosa dela é a seguinte: “Ao acordar, escovo os dentes e afio a língua.” Sem dúvida que ela fazia isso: é só ler um de seus contos para verificar.
Ninguém, penso, vai conseguir gargalhar com as histórias ou os ditos de Parker como faria com os de outro brilhante artista de seu tempo, o lendário comediante Groucho Marx (1890-1977). Porque, apesar de trazer alguns sorrisos à nossa mente (risos dificilmente), seus textos têm bastante amargor e tristeza. A maioria deles trata de relacionamentos problemáticos entre homens e mulheres, quase sempre gente afogada em inúmeras e generosas doses de bebida alcoólica. Mesmo enquanto vigorava a lei seca nos EUA: muitas vezes os frequentadores de restaurantes tomavam suas bebidas em xícaras de chá para disfarçar, o que de certo modo não deixava de ser engraçado. Na disputa por um mesmo homem as mulheres de Parker podiam dizer sobre as rivais que elas eram vacas, capivaras, jararacas etc. As empregadas domésticas, quase sempre negras, eram chamadas por nomes preconceituosos: isso não era (é) engraçado, mas serve como registro de uma época que está completando cem anos já.
Big Loira, com cerca de 30 páginas, conto mais longo do volume é também o melhor, ainda que não traga nenhuma anedota. A graça (também certa desgraça) está na situação toda vivida por Hazel Morse, mulher alta e clara, de pés pequenos, aos trinta anos, um “mulheraço, ainda linda, corada, ereta e com os peitos empinados. (...) Os homens gostavam dela e ela descobriu que era gostoso ser gostada por muitos homens.” Hazel era divertida, gente boa, enfim. Parker nos conta toda a história dessa loirona, o início de tudo, seu casamento mal sucedido e depois suas inúmeras noites fora em companhia de homens, sempre tomando muita bebida. Não trabalhava mais, era sustentada por um e outro amante (relacionou-se com vários tipos curiosos), consumia álcool cada vez mais até cair em depressão e coisa e tal. Nada muito engraçado por si só, mas Parker pega o leitor de jeito e não tem como largar o livro sem antes chegar ao final do conto. Fica curioso falar em obra-prima quanto à literatura de Parker, mas Big Loira poderia ser exatamente isso em sua carreira.
E as demais histórias do volume: valem a pena a leitura? Sim: a autora tem um estilo parecido com o de F. Scott Fitzgerald e, como ele, trata quase sempre do mesmo tipo de personagem (ricos ou milionários em sua maioria), mas seu humor se revela um tanto mais irônico, mais escrachado do que o do autor de O Grande Gatsby. Falo exatamente de 24 Contos de F. Scott Fitzgerald (Companhia das Letras, 2004), que também é uma boa seleção de textos organizada por Ruy Castro. Se gostou dos contos de Fitzgerald, o leitor certamente irá apreciar também as histórias de Nova York contadas por Parker. Penso que para as leitoras o livro tem um atrativo a mais, uma vez que os contos oferecem uma visão particular da questão feminina no período. Dorothy Parker escreveu com propriedade sobre problemas de carência e dependência femininas – de homens, bebidas, amigas, modas, colares de pérolas, casacos de pele, empregadas domésticas (relação com pessoas negras) etc.
Lido entre 27/10 e 02/11/2020.