Arsenio Meira 29/09/2013
Sem Censura - Um Legítimo Almodóvar
Era uma vez Júlio, que amava Raimunda, que foi atacada por Roque, que era marido de Eulália, que não gostava de Isidra, que era tia de Raimunda, que trabalhou com Katy, Mara, Diana e Lupe, que foram amantes de Chu Ming Ho, que não amava ninguém (mas nem por isso se matou.)
A cadeia sexual “drummondiana” descrita acima é o fio condutor de "Fogo nas Entranhas", de Pedro Almodóvar. Um livreto que traz na capa cores quentes e a imagem de uma mulher envolta por labaredas – o que já nos dá uma boa prévia do que virá pela frente.
Foi num sebo do bairro da Liberdade, em São Paulo, que minha irmã - cinéfila de primeira - deparou-se com ele, indiscreto, na prateleira. Para levá-lo para casa, desembolsou a bagatela de R$ 12,00. Com o livro na algibeira, faltava pouco para devorá-lo. Até então, o Almodóvar cineasta pairava tranquilo. Ela leu e eu tomei "emprestado." Mal comecei a leitura, já percebi que o talento do espanhol vai além da sétima arte.
O livro é todo dividido em capítulos curtos, que a princípio parecem independentes, mas que aos poucos, indicam a conexão necessária com a historia deste breve romance ou novela. Enquanto lia, por várias vezes me peguei absorto diante da genialidade do autor.
Interrogações típicas como “de onde esse cara tirou isso?”, me vieram diversas vezes à mente. A maneira como ele descreve os personagens é quase sempre engraçada e, às vezes, chega a ser desconcertante.
Tudo se passa em Madri. O elo de ligação entre os personagens é a fábrica de absorventes Ming, onde Raimunda, a freira, Katy, a abelhuda, Mara, a cínica, Diana, a orgulhosa, e Lupe, a hippie, trabalharam. Donas de personalidades pitorescas e marcantes, todas têm em comum o fato de terem sido amantes do chinês fabricante. Invariavelmente os relacionamentos eram baseados apenas em sexo.
No fim de cada “namoro”, Chu Ming Ho sempre se dá mal: acaba ora abandonado, ora traído pelas belas fêmeas. Ao acorda com o pé esquerdo, revoltado, lá pelas tantas, Ming decide resolve se vingar não apenas das ex-amantes, mas de todas as mulheres da cidade.
Sua arma é o absorvente Ming de última geração, especialmente criado, em segredo, a la guerra-fria-sexual. Como promoção de lançamento, o produto inovador “para todos os dias do mês” é distribuído gratuitamente nas farmácias e drogarias de Madri. Após usá-lo, as mulheres são acometidas pelo tal Fuego en las entrañas, ou seja, por uma vontade incontrolável e insaciável de sexo.
O narrador da história parece ser o próprio Almodóvar, que demonstra intimidade com as personagens, ao mesmo tempo em que define o destino de cada uma delas com pitadas de bom humor e praticamente nenhum dilema psicológico. A presença das mulheres é marcante, o que já era de se esperar do cineasta de alma feminina.
Há ainda outros traços do cinema presentes na literatura do espanhol. Um deles é a presença do “inesperado”. Assim como nos filmes, personagens apáticos e sem expressão alguma ganham um final surpreendente, seja ele trágico, cômico, ou ainda a mistura das duas coisas. É o caso de Isidra, uma anciã de 70 anos, virgem e mestra na arte de enganar a si própria. O que aconteceu com ela? Leia, porque aí já é spoiler.
Algumas passagens se encaixariam perfeitamente num roteiro de cinema, tamanho é o apelo visual que possuem. Eu classificaria "Fogo nas Entranhas" como uma novela. Numa adaptação literal (e imoral), bem que poderia se chamar “Calor na Bacurinha”. Os leitores logo iriam ficar excitados (mais do que encantados) com o jeito Almodóvar de falar da intimidade alheia.
E, certamente, iriam chegar à conclusão de que, como sugere o autor, sexo bom é sexo sem a presença de Freud, Lacan, Édipos e seus súditos, e outros estraga-prazeres por perto. Enfim , nada da presença sombria da culpa. Sem frescura.
É isso. Almodóvar é, como diria o outro, um artista que não perde a pose. Nem lá, atrás das câmaras, nem cá, diante das (infinitas)possibilidades da palavra escrita.