Lucas 03/02/2019
Quando coragem e heroísmo não se confundem
A Segunda Guerra Mundial teve durante a sua duração incontáveis "capitais", que em determinado momento atraíram toda a atenção do mundo para si. Primeiro em Berlim, passando por Dunquerque (França), Pearl Harbor (não uma cidade específica, mas uma base naval), Stalingrado (URSS), Okinawa, Hiroshima e Nagasaki (Japão), entre outras, tomaram ares de protagonismo em vários momentos ao longo dos seis anos de conflito.
Oświęcim é uma pequenina cidade polonesa que adquiriu nos meses finais da guerra esta mesma "aura" de importância. No caso dela, não havia nada de engrandecedor por trás disso; ela não foi palco de grandes batalhas, tampouco foi peça importante na destruição do nazismo. O que Oświęcim (que se pronuncia em alemão como Auschwitz) se tornou foi um símbolo da total bestialidade humana que simbolizou aquele tempo, que não pode ser esquecido: as paredes dos campos de concentração de Auschwitz, que testemunharam milhões de assassinatos, devem ser definidas eternamente como um lembrete para que tais brutalidades podem ser realizadas por seres humanos e que cabe aos bem intencionados zelar para que isso jamais se repita.
Denis Avey, inglês nascido em 1919, foi testemunha ocular de todo o massacre em massa de judeus ali ocorrido entre 1940 e 1945. Prisioneiro de guerra britânico, ele resolveu, em parceria com o jornalista da BBC Rob Broomby, escrever um livro que demonstrasse a sua jornada dentro daquelas cercanias. Em O Homem que Venceu Auschwitz (2011), tem-se um relato pessoal impactante, fruto de grande superação psicológica por parte do seu autor.
O protagonista, nascido em Essex, Inglaterra, foi um bravo soldado britânico que foi designado a combater no Egito. O primeiro terço de suas memórias é permeado por relatos a respeito da guerra no deserto do norte da África, que foi palco para escaramuçados combates, inicialmente entre italianos e britânicos. Este aspecto engrandece a obra porque são escassos os relatos bibliográficos das batalhas que ali ocorreram, que visavam o controle do sul do Mar Mediterrâneo e o acesso ao Oriente Médio. Voltando a Avey, após um intenso combate ele é capturado e deportado de volta à Europa. Após alguns acontecimentos tensos e aleatórios, ele acaba parando em Auschwitz.
Aqui, Denis faz um esclarecimento a respeito dos campos de concentração da cidade: haviam setores destinados a prisioneiros de guerra aliados e alojamentos para os judeus. Alojamento é um substantivo exagerado: eram campos de concentração desprovidos de higiene ou organização. O protagonista, junto com outros prisioneiros, foram direcionados para a construção de tubulações da IG Farben, uma multinacional alemã que estava construindo ali perto uma imensa fábrica de borrachas (um adendo rápido: é interessante ao futuro leitor mais curioso que pesquise a quantidade de corporações alemãs que lucraram com o nazismo. Essa pesquisa trará nomes bem populares.). No entanto, os prisioneiros de guerra eram tratados de uma forma mais branda que os "listrados" (forma pejorativa para denominar os judeus, que se vestiam com parcas roupas listradas) e funcionaram até como um elemento de propaganda: Hitler queria vender ao mundo a imagem de que seus prisioneiros não sofriam maus tratos. Mas a história, cruel, nefasta e covarde, do que acontecia efetivamente em Auschwitz, foi sendo desnudada ao longo das décadas por meio de relatos como o de Denis Avey.
Longe de ser um sujeito passivo, Avey, indignado com as crueldades que via, resolve trocar momentaneamente de lugar com um prisioneiro judeu, a fim de investigar a respeito das instalações dos listrados. Obviamente que isso representou um risco imensurável a ele: abrindo mão das benesses legais que dispunha um prisioneiro de guerra, Denis poderia ser fuzilado (para dizer o mínimo) por tal ato. O resultado dessa troca, por mais que fortaleça no leitor a repugnância dos absurdos que eram cometidos aos judeus, está longe de trazer uma mensagem de redenção, que é o que o título do livro sugere. Este ponto, aliás, é a maior ressalva que possa ser feita em relação à obra. Parece que o título foi construído com um forte viés comercial, já que Avey, por mais que tenha passado por coisas terríveis ao sentir na pele a segregação aos judeus, esteve longe de efetivamente "vencer Auschwitz". É necessário que suas memórias sejam entendidas como um relato profundamente pessoal do mais brutal dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, não tendo nenhuma vertente investigativa ou jornalística. Não são detalhados nomes de guardas alemães dos campos ou outras informações relevantes que poderiam fazer d'O Homem que Venceu Auschwitz um documento de denúncia aos incontáveis crimes ali cometidos.
Esta visão pessoal dos acontecimentos não é, todavia, um fator que empobrece o livro. Ela traz consigo inúmeras experiências que só um soldado raso pode viver. O relato, por exemplo, da morte de Les, amigo de Avey, simultaneamente choca e emociona. Todo esse aspecto íntimo acaba por trazer uma visão totalmente diferente daquela tradicional de um conflito desse porte. Uma guerra é algo muito mais vasto e profundo do que as grandes operações militares, marcadas por enormes aparatos logísticos. Seu desfecho passa pelo enfrentamento de homens comuns, de nações diferentes, que, até hoje, se matam entre si em nome de um mero "ideal", que não tem lógica alguma para incentivar tantas brutalidades.
Denis Avey faleceu em 2015 aos 96 anos. Viveu uma vida marcada pelo maior acontecimento do século XX e que repercutiu em seu psicológico por muitas décadas. Acompanhar esse processo de readaptação é algo dramático, como o leitor perceberá (há ainda uma bela história de superação de Ernest, judeu que Avey ajudou em Auschwitz e que ocupa as últimas páginas da narrativa). O Homem que Venceu Auschwitz é um livro que se ocupa de demonstrar a guerra e o seu impacto sombrio na vida de um bravo soldado e ensina que qualquer conflito é muito mais que um insumo futuro para produções cinematográficas: nem sempre as guerras são formadas só por histórias de heroísmo, e a verdadeira coragem está em não ser passivo diante das injustiças.