Escritores Escritos

Escritores Escritos Gustavo Bernardo
Victoria Saramago
Simone Campos
Henrique Rodrigues




Resenhas - Escritores Escritos


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Editora Flâneur 05/06/2011

Resenha de Guilherme B. Mazzocato
Resenha de Guilherme B. Mazzocato

Quando alguém se propõe a escrever literatura de ficção, uma das maiores primeiras dificuldades que se apresentam – um bicho de sete cabeças, na verdade – é a capacidade que esse postulante a escritor tem de se colocar no lugar de outra pessoa. Seus personagens, no caso.
Não que, para escrever bem, tal talento seja um pré-requisito, é claro. Mas, em minha opinião, para que um conto ou um romance transponha aquela linha divisória entre o relato autobiográfico e o relato literário propriamente dito, nós, escritores ou metidos a, necessitamos possuir uma leve potencial para a imaginação em relação ao que se passa na cabeça dos seres que criamos, sejam eles abstratos ou não.
Quando o personagem em questão é, além de concreto, uma figura histórica, uma pessoa que realmente já existiu, o desafio é maior ainda. É preciso dar cores definidas a alguém que já foi, e mais, alguém notório, conhecido por seus feitos. Visto, revisto, mas que ao mesmo tempo, no momento do conto, se torna totalmente teu. Ele/ela refletido em teu prisma, ou vice-versa, e não existe uma fórmula muito concreta para isso. É preciso se munir de todas as informações possíveis acerca do personagem/objeto de estudo, mas também, esperar que ele emirja de você. Se emergir.
Finalmente, um terceiro Quando: quando esse personagem concreto, histórico e teu for também um escritor famoso do passado, aí já estamos entrando em um grau de dificuldade quase metafísico.
Foi por esta floresta de espinhos que, em um livro concebido por Guilherme Tolomei e organizado por Victoria Saramago, 22 escritores brasileiros da atualidade decidiram se embrenhar. Escritores escritos, lançado pela Editora Flaneur em 2010, é uma belíssima floresta, com árvores dos mais diversos formatos e tamanhos. De Homero a Jean Genet, de Dante Alighieri a Charles Bukowski, todos foram traduzidos em personagem pelo crivo de um time de autores nacionais, desde uns que já possuem certa reputação na cena literária deste século, até outros que saíram do forno nos últimos anos.
Partindo-se do pressuposto de que Guilherme Tolomei e Victoria Saramago propuseram um diálogo entre autores fora e dentro do papel, este crítico literário que vos fala só pode humildemente declarar que lhe é impossível analisar o grau de sucesso desse diálogo. E isso porque, salvo uma que outra exceção, eu não conheço com minúcias a vida e a obra de todos os escritores escritos na coletânea.
Só posso, portanto, dar alguns palpites despretensiosos, e concernentes às narrativas dos contos do livro. E, tendo dito isso, declaro de uma maneira óbvia que é difícil fazer uma seleção dos contos que mais me agradaram, porque existem ali contos realmente muito bons.

Prefiro não fazer julgamentos de valor, pois isso é bem deselegante, e, além disso, estas linhas não passam de uma reles opinião: minha, pessoal, parcial, não melhor nem pior do que a de qualquer outra pessoa. Muito embora eu sinta que devo pincelar algumas considerações em relação a alguns contos da obra.
E, ainda no bojo da questão relativa à capacidade de “escrever outra pessoa”, o que meus olhos mais captaram das narrativas – e que mais relevante achei para comentar aqui nesta resenha literária – foram as diversas maneiras que os autores contemporâneos desfiaram para se aproximarem dos seus alvos escolhidos.
Uma tendência interessante foi a de certos escritores escritores não se preocuparem tanto em colocar os escritores escritos em um plano real, seja esse plano real em 1ª ou 3ª pessoa. Em Tarde de Pedra, por exemplo, a autora fluminense Natália Nami transporta Emily Dickinson para uma época atual, encarnada em uma colegial. Sutilmente ela vai dando indícios que a garota do século XXI é a poeta norte-americana do XIX. Nesta mesma linha surrealista, a protagonista de Solitário nunca mais entra em um contato mediúnico com o escritor maldito Kurt Vonnegut. O conto da carioca Cecília Gianetti transporta os protagonistas e o espírito de Vonnegut para uma Manhattan futurista onde o médium é uma espécie de aparelho eletrônico chamado Hooligan 7 xxx. Desconstruir os escritores escritos desta forma foi uma inteligente maneira que muitos dos autores acharam para, de certa forma, reencontrá-los. É esse também o caso da hilariante história de Simone Campos, em que H. P. Lovecraft aparece em um sonho de um dos protagonistas, e cantando “Desde que o Samba é Samba”, de Caetano Veloso, ainda por cima.
Em uma orientação completamente oposta à das narrativas centrífugas, muitos dos contos que retrataram os escritores-personagens como protagonistas verossímeis e reais também renderam excelentes frutos no interior da floresta.
Apesar de “realistas”, essas narrativas não ficaram em nada a dever quando se analisa as alucinações e pontos de virada de suas tramas. É o caso do conto de Julio César Corrêa, inspirado e expirado no dramaturgo norte-americano Tennessee Williams. O contista carioca narra as últimas horas de vida do autor de Um Bonde Chamado Desejo pelas ruas de Manhattan, com uma garota loira que possui muitas semelhanças com sua personagem mais famosa, a auto-destrutiva Blanche Dubois. A trama tem uns ares de peça de pocket theatre (traduz como “teatro de bolso”, teatro rápido, gênero ainda muito pouco explorado tanto nos palcos como na cena literária do Brasil), que dá uns ares dramáticos de Gran Finale para os fictícios últimos momentos da vida de Williams. Se esta foi a intenção de Corrêa, ele foi muito feliz.
Ainda no quesito “últimos momentos da vida do autor”, a própria organizadora da coletânea, Victoria Saramago, tece uma brilhante história de um casal de irmãos que conhecem Oscar Wilde (sob o pseudônimo de Monsieur Melmoch) nos últimos meses de sua eufórica e curta existência. A irmã do casal torna-se a enfermeira do irlandês maldito e, de certa forma, sua confessora, como atesta o próprio título da história, Extrema Unção.
Em uma terceira linha, percebi vários contos que foram contados como se fossem parábolas. Um dos exemplos mais interessantes, o de Flávio Izhaki, que teceu um diálogo entre criador e criatura. E não estou falando de criador e criatura literárias, e sim biológicas. No caso, a mãe de Albert Camus e seu famoso filho! Em uma visita à casa dela na sua cidade natal de Argel, o já consagrado escritor franco-argelino se depara, desde o interior de um táxi, com seu passado na provinciana colônia francesa, ao mesmo tempo em que se prepara para confrontar a si mesmo em frente à sua progenitora. Ele não é mais o indivíduo Albert Camus, somente. A sua fama já tomou parte de sua essência e é isso que ele teme demonstrar à própria mãe.
Outro escritor francês colocado no meio de uma parábola foi o autor maldito Jean Genet, pela gaúcha Manoela Sawitski. Genet, em seus anos de mendicância em Paris, intercepta uma respeitável mulher no Jardim das Tulherias e lhe entrega um anel, dizendo que o achara no chão e assumira que era dela. No que a moça nega ser a dona da jóia, Genet inicia com ela um diálogo que trava de pobreza, riqueza, juventude e hipocrisia, e finalmente termina convidando-a para jantar em algum lugar, pois ele está com fome. A moça, assustada, lhe entrega uma quantia de dinheiro, como que temendo um assalto e vai embora assustada, tentando dissimular o asco que sente pelo mendigo. Genet, desiludido mais uma vez com o medo da sociedade humana, guarda o dinheiro da moça, pega o anel, e o joga perto de outra moça(!), deixando claro que aquilo fora um jogo desde o início.
Em Escritores Escritos, há também narrativas que parecem demonstrar uma total identificação com o autor escolhido. É o caso do conto de Diana de Hollanda dando voz de primeira pessoa Sylvia Plath, onde se nota uma completa simbiose da verborragia frenética e dos pensamentos da personagem. Assim como houve escritores como Saulo Aride e André de Leones, que reproduzirem os estilos literários de seus escritores-personagens (respectivamente Edgar Allan Poe e David Foster Wallace) quase que à perfeição.
Uma floresta bem variada, tanto no tamanho de suas árvores como no odor de suas flores!

Guilherme B. Mazzocato
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