GCV 19/03/2009
Ilusão do 'eu', realidade do 'nós'
Quando decidiu criticar o regime soviético stalinista, o autor anglo-húngaro Arthur Koestler estava, já em 1940, revendo certas posturas da União Soviética. Quase 70 anos depois, parece natural e óbvio criticar um regime que matou algo em torno de 20 milhões de russos, boa parte durante Stalin; mas nos anos 40, e principalmente 50 e 60, soova burguês, anti-revolucionário e pró-imperialismo ianque.
Koestler, contudo, estava longe de ser um pequeno burguês. Sua crítica é de alguém que esteve próximo aos Grandes Expurgos, que viu a própria URSS remodelar de modo assustador seu próprio passado. Seu protagonista, Rubashov, de acordo com George Orwell, "poderia ser chamado de Trotsky, Bukharin, Rakovsky".
Embora seja uma tragédia anunciada desde a primeira página, "O Zero e o Infinito" não recorre a descrições de brutalidade e tortura gratuita. Sua grande virtude é não utilizar do choque fácil da dor física, mas descrever a requintada frieza de um pogrom silencioso. Rubashov, por ser um dos últimos a ser preso, sabe que não lhe será dado o perdão: "o horror que emanava do N.º 1 consistia, sobretudo, na possibilidade de que estivesse com a razão, e de que todos quantos matava tivessem de admitir, mesmo com a bala na nuca, que era concebível que estivesse com a razão" (p. 23).
Com uma prosa direta e bem fluida, Koetler acerta a mão em um estilo quase "invisível", deixando seu objeto de crítica sob os holofotes, sem miçangas. A discussão do método soviético, que se segue por toda a obra, vale por uma aula de história, mas também aponta para questões de cunho filósofico: bendito seja o tradutor francês que optou por "Le Zéro et l'Infini" em detrimento do burocrático "Darkness at Noon". Após a leitura, repensar sobre a relação de valores entre Zero, Infinito e Um (não nomeado, mas é Stalin) toma proporções filosóficas bem mais amplas. Ponto para Koetler.