Nath 23/08/2020
A PIRÂMIDE E A DITADURA MILITAR BRASILEIRA SOB A ÓTICA FEMININA
"Ana Clara, não envesga! – disse Irmã Clotilde na hora de bater a foto.
– Enfia a blusa na calça, Lia, depressa. E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta! A pirâmide." AS MENINAS
Esse foi o meu último romance da minha AMADA, Lygia Fagundes Telles! E a partir de agora só me resta ler os outros livros de contos da autora, já que ela só publicou quatro romances completos: o Ciranda de Pedra, Verão no Aquário, As Horas Nuas e o destruidor As Meninas.. E agora eu já posso dizer que finalmente eu li todos os romances da incrível Lygia Fagundes Telles!
Mas o As Meninas é especial. Não por ser o meu favorito (que continua sendo o maravilhoso Ciranda de Pedra!), mas por ser um dos livros mais corajosos da nossa literatura brasileira. Um livro tão corajoso, aliás, que recentemente entrou no desafio dos 100 livros essenciais da literatura brasileira da Revista Bravo. E, sem dúvida, entrou também no meu top 10 livros da VIDA! Mesmo sem ser o meu favorito da autora... Confuso? Explico!
Quando eu soube da existência desse livro, que se tratava de uma história de três amigas durante o período da Ditadura Militar no Brasil... Pronto! Eu não precisava de mais nada para sair correndo atrás do livro! E ainda bem que eu tive a chance de lê-lo agora nesse momento atual tão conturbado do nosso país, porque este é o tipo de livro //Testemunha//.
A própria Lygia disse certa vez em uma entrevista que "a função do escritor é ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade". E muito provavelmente este foi o mote perfeito para escrever o As Meninas, em 1973. Uma década particularmente conturbada da nossa História brasileira, com profundas consequências na vida política e social do país, e que deu a autora o tema certo para fazer o tipo certeiro de moldura da época. E MDS, sem dúvida este livro merece constar entre os mais OUSADOS DA LITERATURA BRASILEIRA.
Pela primeira vez na história da nossa literatura, um depoimento REAL de tortura de um preso político foi inserido nas páginas de um romance, enquanto o regime ainda estava em pleno vigor no país, no período de lançamento do próprio livro.
A narrativa aqui mergulhou na vida pessoal dessas três Meninas que vivem em um pensionato Católico na capital Paulista. E é isso! Se formos analisar de uma forma "simplificada", essa é uma história sobre a amizade durante um período bastante tenebroso da nossa história brasileira.
E cada uma dessas três Meninas, que a gente logo fica sabendo no início da história que trata de uma PIRÂMIDE, vai representar diferentes grupos de pessoas daquela época. Essas três amigas se definem através da figura de arquétipos típicos de uma época: a Ana Clara, a mais bonita, com rosto de modelo fotográfica, estudante de psicologia da USP, é também a mais problemática por ser dependente de drogas e viver cercada de traficantes em festas da elite paulistana; a Lia, também conhecida por "Lião" ou "A Guerrilheira", uma nordestina vinda da Bahia para São Paulo afim de cursar Ciências Sociais na USP, diretamente envolvida na luta armada contra a ditadura junto com o namorado, um famoso preso político que conseguiu escapar do país para a Argélia (detalhe importante é que esse preso político, um diplomata famoso, realmente existiu e a Lygia o inseriu na narrativa como forma de protesto); e finalmente a Lorena, a mais intelectualizada, estudante de Direito da USP, mas com uma personalidade mais sensível de artista, é a filha única de uma família tradicional de proprietários de terras da região.
Com o passar das páginas percebemos claramente que a trama central girou especialmente em torno da Lorena, por ser a amiga mais rica e a mais sensível, acabou por sempre servir de ajuda econômica e psicológica para as outras duas. Sem dúvida, a Lorena foi a protagonista e abriu e fechou o livro com cenas magníficas de encher os olhos!
Mas no meio de todo esse cenário histórico brasileiro, o que mais me chamou a atenção foi o estilo narrativo. O narrador aqui não é convencional, não tem um "olhar" padrão da primeira ou da terceira pessoa. Temos aqui claramente um estilo narrativo de fluxo de consciência.
Mas não se engane achando que irá encontrar algo como os fluxos da Clarice Lispector ou da Virginia Woolf, por exemplo. A forma como as vozes de cada Menina alternaram-se muitas vezes de repente, sem nenhum aviso. Em alguns momentos um narrador em terceira pessoa também se fez presente e costurou alguns outros elementos na história; tudo junto e misturado no meio da consciências das três personagens. Essas narrações dos fluxos em primeira pessoa e depois em terceira se misturavam aos pensamentos no momento presente da história, sem que ao menos tivesse um "filtro" ou um tipo de refinamento no próprio texto... Pensamentos desconexos, quase aleatórios, que se interligaram. Como se realmente pudéssemos ler as mentes das três personagens em tempo real! E a gramática da narrativa, a pontuação das frases também acompanhou o fluxo.. Mas essa dinâmica insana das narrações ajudou a construir a personalidade de cada uma. E eu identifiquei claramente quem era quem só pela forma como cada personagem falava ou se expressava. Mais um ponto para a nossa Lygia!
Ela simplesmente conseguiu criar um fluxo de consciência único só dela. E o desfecho.... Ahhhh!!!! O desfecho da história foi simplesmente DESTRUIDOR e me deixou em posição fetal agarrada com o livro, refletindo sobre tudo...
E como sempre acontece nas minhas leituras da Lygia, eu me identifiquei demais com alguns aspectos da personalidade mais sensível e melancólica da Lorena. E não poderia finalizar essa resenha sem mencionar o quanto essas três Meninas me fizeram lembrar de mim mesma, quando eu mesma tinha os meus 19/20 anos: estudante de Jornalismo, estagiaria no jornal local da minha cidade. Uma Menina que sonhava em trabalhar com arte, e vivia com os livros da Clarice Lispector dentro da bolsa da Faculdade. Filha única, cheia de amigos, e que acreditava que o casamento convencional era uma instituição falida e por isso optou por sair de casa para ser independente sozinha no próprio apartamento (e o mais importante, SEM filhos! Porque eu não sou obrigada rs) No final dessa leitura, foi inevitável não refletir sobre o que aquela Menina pensaria da mulher de 30 e poucos que eu me tornei: trabalhando com fotografia, estudante de Mestrado, os meus livros da Clarice ainda dentro da minha bolsa, rs, e os meus amigos queridos da época da faculdade de Jornalismo ainda comigo, dona da minha vida, do meu próprio apartamento. Ler essa história, me fez pensar que aquela Menina do passado, ficaria feliz com o meu eu "futuro presente", e isso me encheu de alegria! ^^.
Somos todos feitos de escolhas. E a luta pelas nossas escolhas não termina nunca. Continua. Para todos! Já dizia a espetacular Filosofia criada pela Lorena aqui nesse livro:
"O estar era a estagnação do ser (...)Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Ora, se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me desintegrando (essencial e essência) até a pulverização total.."