Toni 28/08/2018
Um grande epílogo à obra de Saramago
Não teria sido possível haver um Saramago sem Portugal. Portugal, todavia, não merece o Saramago que teve. Já me explico: à exceção da Casa dos Bicos que virou a fundação que leva seu nome, a memória do escritor ainda não chegou às ruas, praças, ao coração do povo português. Não obstante, é muito difícil andar por Portugal e não reparar na dicção, no fraseado de sons e pausas, no barroquismo de uma linguagem que se desdobra em volutas sobre si mesma (como as ruas de Lisboa) e que se tornaram marca do estilo do autor. Irônica e teluricamente, a cultura e o espírito de Portugal estão entranhados em sua escrita e não há cara feia de carola que consiga arrancar isso dos ares portugueses.
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Viagem a Portugal é um relato de viagens (perdoem a obviedade). Foi lançado originalmente em 1990 numa versão com fotografias e reeditado, apenas texto, em 1995. Imbuído de um forte humanismo desmistificador, o Saramago viajante se esforça em não apenas ver, mas estar nos lugares, imaginar “que homens e que mulheres suportaram o peso das muralhas, que palavras foram gritadas de uma torre a outra torre, que outras murmuradas à boca da cisterna”. Para o escritor, “viajar é descobrir, o resto é simples encontrar”, diferença que distingue o viajante do turista, que via de regra visita aquilo que já conhece por fama ou fotografia. Viajar é, portanto, um exercício que exige consciência incômoda, imaginação e, sobretudo, entusiasmo para permitir que a experiência invada todos os sentidos, afinal, “é viagem o que está à vista e se esconde, é viagem o que se toca e o que se adivinha”.
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O mais curioso, no entanto, é encontrar a ternura e o respeito que invadem o viajante diante de cada rua, monte, rio ou monumento, sejam castelos, ruínas ou igrejas e, nestas últimas, seus altares, púlpitos, pinturas, entalhes, painéis de azulejos, claustros. Aqui, a cultura sacra não impressiona o viajante por sua carga religiosa (que nesses méritos o escritor ateu já deu suficientes mostras de desaprovação), mas pelo interesse naquilo que resiste de humano na pedra das colunas, no mármore dos santos, na pincelada das abóbadas. O suor de quem carregou pesados blocos de arenito, as angústias de quem modelou as faces de um Jesus crucificado, os calos nas mãos daqueles que deram o sangue por um retábulo cheio de querubins, a vontade de vencer a morte que se exprime nos arcos em ogiva das catedrais.
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Apesar de sua posição a meio caminho, Viagem a Portugal é o grande epílogo à obra de Saramago. Uma bela lição de humildade e admiração pela história e a história de seu povo, terno sem ser conivente, apaixonado sem deixar de ser crítico. Precisa ser lido e apreciado com vagar, seguindo aquele livro dos conselhos que epigrafa o Ensaio sobre a cegueira. É, ainda, uma bela lição sobre o olhar, que demonstra que para entender o mundo todos os sentidos são necessários, e talvez ainda assim não cheguem. Como diz o viajante a certa altura, há visões que requerem as palavras todas e, estando todas ditas, mostram como tudo ficou por dizer.