Matheus Lins 04/10/2009
http://omegageek.com.br/oneuromancista/2009/10/04/esperando-godot-samuel-beckett/
Títulos costumeiramente denunciam as peças-chave de suas histórias; vide, por exemplo, os livros da série Harry Potter, que sempre fazem menção a elementos fundamentais da trama em questão (e.g: A Pedra Filososal), ou, ainda, os romances conspiratórios de Dan Brown. Por isso mesmo, quando vemos um título como Esperando Godot, é natural assumir que a identidade do Godot e/ou o contexto de sua aparição serão de imprescindível importância à trama. Afinal, caso contrário, por que ressaltar o personagem a tal ponto de nomear a própria obra atrás dele?
Trata-se, contudo, de uma expectativa enganosa: Godot nada mais é do que o equivalente literário do conceito de MacGuffin popularizado por Hitchcock:
"[É]o dispositivo, o artifício, ou os papéis que os espiões estão atrás… A única coisa que realmente importa no filme é que os planos, documentos ou segredos pareçam de vital importância para os personagens. Para mim, o narrador, eles não têm qualquer relevância."
Godot nunca aparece. Ao leitor é entregue apenas vagas descrições de sua aparência. A sua identidade per se não é o que importa, mas, sim, o que ele representa, o que também é vago e aberto a interpretações. Godot pode representar a esperança, ou a liberdade, ou a salvação, ou redenção, ou simplesmente uma alegoria a Deus. A força do personagem jaz justamente na sua obscuridade, como explica David Mamet no seu Three Uses of the Knife:
"Quão menos específicas as qualidades do MacGuffin forem, mais interessada a audiência ficará… Uma abstração vaga permite aos membros da audiência projetar seus próprios desejos num alvo essencialmente ausente."
Esperando Godot foi escrita por Samuel Beckett em meados dos anos 50, numa Europa ainda se recuperando das calamidades da Segunda Guerra. Trata-se não de um romance, e, sim, de uma peça teatral, constituída por apenas quatro personagens: os amigos Vladimir e Estragon, à espera de Godot por uma “prece” ou “vaga súplica”, como indicado pelo segundo; Pozzo e Lucky, mestre e servo, respectivamente, que cruzam caminhos com os dois herois em meados de cada ato em estados drasticamente diferentes; ainda, há a presença, no desfecho de cada ato, de um mensageiro de Godot, que, em ambas as ocasiões, desculpa-se pela ausência do mesmo e promete que, no dia seguinte, ele aparecerá (prometa essa que nunca se cumpre).
Ao longo das poucas mais de duzentas páginas da peça, a ação é mínima, a narrativa é ancorada nos diálogos e divagações dos personagens, que frequentemente se entregam a uma stream of thought coletiva, complementado as ideias uns dos outros, ou denotando suas contradições e/ou implicações, num hábil exercício linguístico recheado de humor negro e sutis críticas sociais.
Também vale a pena ressaltar a forma como Beckett distorce, gradativamente, a noção de tempo da história, a ponto de pôr em dúvida tanto o leitor quanto os personagens a real duração dos eventos. É dito no começo da peça que o par de protagonista está há dois dias à espera de Godot, mas surgem inúmeros indícios ao longo da narrativa que contradizem isso – como o fato de Pozzo não se lembrar deles, ou a árvore – o único elemento na paisagem desoladada peça – aparecer subitamente folheada no segundo dia, quando no primeiro estava totalmente “nua”.
Esperando Godot é um dos exemplos mais conhecidos e memoráveis do Teatro do Absurdo, termo criado nos anos sessenta para designar uma série de peças das décadas anteriores que, embora bem diferentes entre si, compartilhavam de várias características em comum, como o enredo muitas vezes non-sense e diálogos naturalistas e evasivos.
No Brasil, a peça foi publicada pela editora Cosac Naify numa edição de luxo, com acabamento em capa-dura e vários extras, como fotografias das numerosas interpretações da peça e diversos artigos que visam a dissecar os significados da obra, oriundos de especialistas da área eprincipalmente, de Beckett. A tradução foi feita pelo professor de Teoria Literária da USP, Fábio de Souza Andrade, com apêndices que esclarecem pormenores do texto.