Camilo 01/07/2011
"Amor sem fim": racionalismo científico vs. fanatismo religioso
Ian McEwan não é apenas um dos maiores escritores da atualidade; é também um declarado humanista secular, apaixonado por ciência, o qual se alinha com orgulho ao lado de ateus notórios como Richard Dawkins, Sam Harris, Dan Dennett e Christopher Hitchens, na defesa de uma visão de mundo mais racional, mais pautada no saber científico do que nas vagas intuições e crenças sobrenaturalistas a que nós, seres humanos, estamos naturalmente propensos. Não é por acaso, portanto, que o embate entre fé e razão vez e outra dá as caras em suas obras literárias.
De fato, foi em Cães negros (Rocco, 1996) que McEwan trouxe à tona pela primeira vez a antinomia entre fé e razão, não apenas na discussão sobre a controversa natureza do bem e do mal, num romance que fala do nazismo e do colapso do Muro de Berlin e do regime soviético, mas no próprio desnudar que o livro promove das personalidades opostas de um casal que — simbolizando ela, June, o misticismo new age, e ele, Bernard, a mentalidade racionalista — representava a própria incompatibilidade entre a crendice idealizadora e espiritualizada, de um lado, e o ceticismo racional, do outro. Na década seguinte, o excelente romance Sábado (Companhia das Letras, 2005) apresentou-nos, por sua vez, o neurocirurgião Henry Perowne, a voz mais contundente do racionalismo científico num personagem de McEwan, cujo discurso narrativo jamais se deixava tomar por impressões demasiado emotivas, não importando o quão impactante fosse o que se dispunha a relatar ou analisar, ao mesmo tempo em que reconhecia que a ignorância científica era um dos grandes males do mundo. E destaque-se à parte, ainda, Solar (Companhia das Letras, 2010), romance atípico de McEwan por seu tom irônico (ausente em seus demais livros, via de regra mais sombrios), em que o autor satiriza o discurso “ecologicamente correto” e denuncia o oportunismo político em torno dele, bem como a vaidade e a ambição acadêmico-científica, as relações sociais antiéticas, a questão problemática da institucionalização da ciência, além de também chamar a atenção para o relevante tema da mudança climática e da urgente necessidade de fontes de energia renováveis, sem que jamais a narrativa subscreva o discurso negacionista nem tampouco adote o tom de pregação dos profetas do aquecimento global apocalíptico. Porém, há ainda outro romance desse talentoso escritor britânico em que a oposição distinta entre ciência e religião, razão e fé, é explicitamente desenvolvida: trata-se de Amor sem fim (Companhia das Letras, 2011; lançado anteriormente, com o título de Amor para sempre, pela editora Rocco, 1999).
Neste romance de leitura cativante, somos apresentados a Joe Rose, o protagonista-narrador, físico de formação mas há muito afastado da pesquisa acadêmica, que acabou construindo uma carreira produtiva e bem remunerada escrevendo livros e artigos de divulgação científica para o público leigo. Casado com Clarissa Mellon — professora e crítica literária, então focada na poesia de John Keats, cuja obra é objeto dos estudos que vem realizando —, os dois vivem uma longa, apaixonada e afetuosa relação, frustrante apenas pelo fato de Clarissa não poder engravidar como tanto desejava. Pois esse sólido casamento vê suas bases serem profundamente abaladas pouco depois que um acontecimento tão insólito quanto trágico coloca entre eles, Jed Parry, um fanático religioso que, após seu primeiro encontro com Joe, desenvolve por este uma repentina paixão (amorosa), que acredita ter sido uma “revelação” de Deus.
Na verdade, a súbita paixão de Jed, que vai aos poucos se revelando uma obsessão doentia, consiste num caso patológico de erotomania ou de síndrome de Clérambault: estado mental amplamente documentado em que a pessoa mantém a ilusão de que o objeto de sua paixão (que na maioria dos casos é alguma celebridade, mas não necessariamente) corresponde a seus sentimentos, ainda que em segredo e por meio de sinais sutis, por se ver incapaz de demonstrar abertamente seu amor. Nesses casos, mesmo o manifesto desprezo do amado é interpretado como “encenação”, que, no fundo, significaria o oposto do que parece querer dizer. Ademais, uma vez que, na ocasião do primeiro encontro entre Jed e Joe, este acaba se negando a juntar-se ao outro numa prece pela alma de um homem recém-falecido, o fanático apaixonado conclui que seu imediato amor por Joe integra os enigmáticos desígnios divinos. Tal conclusão é salientada, por exemplo, numa carta enviada ao protagonista, na qual Jed Parry, após mencionar que havia lido vários textos de Joe visando à compreensão pública da ciência, confessa sem receio:
Eu o odiei por aquilo, mas nunca esqueci que também o amava — e por isso continuava a ler. Ele precisa da minha ajuda, eu me dizia quando estava prestes a desistir, ele precisa que eu o libere de sua pequena gaiola da razão (p. 160).
É interessante notar como o bitolado discurso religioso de Jed, tal como o de vários crentes no mundo real, denuncia grades encarceradoras no racionalismo científico, mas jamais admite semelhante limitação do próprio entendimento imposta pela fé. Em todo caso, cumpre destacar que, justamente aqui, nesse trecho da carta de Jed, pode-se perceber sua paixão ilusória entrando em claro conflito com sua crença fanática e intolerante, em face das críticas que a religião encontrava em alguns escritos de Joe, quando, num breve episódio de patente dissonância cognitiva, o erotomaníaco deixa escapar as seguintes linhas ameaçadoras:
Houve momentos em que duvidei se havia entendido corretamente o que Deus queria de mim. Será que me cabia entregar em Suas mãos o autor daqueles escritos odiosos contra Ele? Talvez minha missão fosse mais simples e mais pura. Quer dizer, eu sabia que você escreve sobre assuntos científicos e estava preparado para me sentir perplexo ou entediado, porém não sabia que você escrevia movido pelo desprezo.
Pouco mais adiante, Jed arremata, com um comentário mais do que lugar-comum nos argumentos de religiosos reais contra o ceticismo científico: “Você está lidando com poderes que nem você nem ninguém na Terra são capazes de conceber“. De fato, a proposição de que questionar a fé e seu objeto é evidência de incompreensão de que se está diante de algo que escapa à limitada razão humana é uma das máximas mais conhecidas e, portanto, facilmente flagrada na apologia religiosa.
(CONTINUE LENDO ESTA RESENHA EM: http://ontogenialiteraria.wordpress.com/2011/07/01/razao-vs-religiao-em-mcewan)