Nika 13/07/2011O Sentidos na FicçãoAcabo de terminar a leitura do livro Oficina de Escritores, de Stephen Koch, professor de escrita criativa nas universidades de Columbia e Princeton. É com certeza uma boa aula. Um bom curso, eu diria. Daqueles te dá a dimensão da tua incipiência em tantas coisas no universo da escrita que, ao sair do livro, a gente se sente menor do entrou.
É certo que ele passa um bom tempo a convencer seu leitor (aspirante à escritor) do óbvio. Não é possível ser um bom escritor sem ser um leitor melhor ainda. Não é possível escrever profissionalmente sem estudar para isso, independente do que se quer escrever. Cada tipo de texto vai exigir uma preparação diferente.
Confesso que a primeira assertiva (muito embora eu saiba da sua verdade) sempre me deixa chocada. Adaptando a metáfora do autor: como alguém pode querer jogar futebol, se não gosta de assistir ao jogo? Seria como EU querer jogar futebol. Ou seja, um despautério total. Quanto a segunda afirmação, eu creio estar plenamente adaptada a uma existência acadêmica que não consegue encarar nada sem estudo. Mas imagino que haja uma boa quantidade de jovens aspirantes cuja crença no próprio talento é pouco permeável as tentativas de convencê-lo que, talento sem estudo é bom, mas nem sempre é legível ou, de qualquer forma, salvável em meio aos rasgos de amadorismo que o acompanham.
O livro é escudado nas frases de grandes escritores sobre o ofício de escritor. Koch não se furta a usar todos os argumentos de autoridade que tem em mãos. E funciona. Muito raramente ele não me convenceu. Contribuiu também sua visão genérica e ampla, sempre pronta a acolher as técnicas idiossincráticas de cada um. Mesmo ressaltando a necessidade nunca descartável de que: sim, haja alguma técnica ao realizar este tipo de trabalho.
De tudo, no entanto, gostei mais de duas coisas (e gostei de bastante coisa no livro). A primeira está no último capítulo, onde o autor faz um tour pelos livros sobre o ofício de escritor, escritos por escritores. Uma pena que tenhamos tão poucos deles traduzidos. Acho que um grande público de jovens aspirantes se beneficiaria com isso, mesmo que a leitura em inglês esteja cada vez mais difundida. Por outro lado, fica uma sensação de que temos poucos trabalhos de escritores brasileiros consagrados falando do ofício. Sim, sim, nós temos muitas entrevistas em revistas com escritores falando sobre isso. Mas entrevista, por melhor que seja, é direcionada. Possuímos alguma coisa nas memórias de algum escritor como o Nélson Rodrigues, por exemplo. Porém, no conjunto, que chegue ao público leitor, se tem pouco, bem pouco, por parte de nossos maiores autores.
O segundo elemento que me agradou sobremaneira ficou naquilo que Koch nomeou como VOZ. Não somente a voz dos personagens, mas a voz própria do autor e aquela com a qual ele quer contar cada uma das suas histórias.
Sobre a voz do personagem, é interessante sua sugestão sobre o uso dos sentidos. Ou eu achei interessante porque uso isso, não sei. Mas construir uma personagem não apenas por sua aparência, mas por sua voz é algo que me tocou profundamente. Tenho personagens que já chegam a minha cabeça falando pelos cotovelos. Outros são silenciosos, mas é daqueles silêncios eloquentes em que a postura diz tudo. Estes últimos me exigem dias de observação. Costumo pegá-los pelo olhar. E aí percebo que, quando escrevo, falo em olhos o tempo todo. Falo porque é neles que eu vejo o que quero ver. Obviamente, me cerco de cuidados e releituras para não atormentar o leitor que prefere ouvir, claro.
De qualquer forma, eu vejo ambos como uma espécie de jogo sinestésico. O bom olhar arrepia tanto ao autor quanto ao leitor. A voz correta cria uma cadência, um ritmo, um entendimento não transferível para outro personagem. Lembro de já ter escrito frases a serem ditas por alguém e ter de trocar seu autor, ou a forma do comentário, pois aquele a quem a fala originalmente se destinava, jamais a diria. Tenho uma personagem de quem o Guto vive reclamando por pouco ouvi-la. Claro, ela realmente quase não fala. Nem sei se um dia será falante. Não posso convertê-la numa tagarela e também, como autora, ela pouco me deixa invadir seus pensamentos. Transformar seus silêncios em eloquência, porém, é trabalho meu, não dela. Eu preciso escrever melhor, ela já é mais difícil de mudar (como o são pessoas que falam pouco, ou falam em demasia ou, ora, ela não vai mudar por ora, é mais um fato sobre ela).
A outra voz é a do escritor e o exercício proposto é tão interessante de ser feito consigo quanto com outros autores. Afinal, quem está narrando? Este autor que você lê, ele também é uma espécie de personagem e ele não se confunde com o narrador em absoluto, mesmo com o narrador externo, em 3ª pessoa e onisciente. O escritor é uma superposição de vozes. A sua real, que pode ser ou não censurada na hora da escrita e, por isso cria o personagem escritor que reside sob e muito além da narração. A que ele revela como narrador, a que se faz ouvir em cada personagem.
O escritor convive esquizofrenicamente com a arte e o papel. Ele nunca está exatamente sozinho, ou parado, ou pensando apenas. Assim, limpar essas vozes para se fazer entender é um exercício nem sempre fácil, mas interessante e importante. Certo, sempre há alguém a defender que vá tudo para o papel, sem controle. Que a arte é o incontrolável. Aí terei de concordar com Koch, não se controle e escreva para ninguém. Se quer comunicar, seja como for, conheça cada passo, cada voz. Se quiser misturar tudo, faça-o, mas consciência de o fazer. Alegar desconhecimento não torna ninguém mais talentoso, apenas desconhecedor da própria criação.
P.S.: Belíssima capa com os recortes de azulejos.