Ricardo Tavares 31/12/2023
Vamos comprar um poeta
Esse livro é o primeiro que leio do autor português. Foi uma boa surpresa ler essa história simples e lírica que faz uma crítica à sociedade capitalista e consumista, uma sátira contundente ao papel das artes na sociedade moderna. Se lembrarmos o que aconteceu no (des)governo do inominável que presidiu o Brasil e causou um desmonte da cultura em nosso país, muito do que Afonso Cruz fala pode se tornar realidade caso a sociedade moderna não valorize as Artes como um bem cultural de inestimável valor para todos nós.
"Numa sociedade dominada pelo materialismo, as famílias têm artistas em vez de animais de estimação. É nesse cenário, onde cada espaço tem um patrocinador, cada passo é medido com exatidão, e até a troca dos afetos é contabilizada, que uma menina pede ao pai um poeta. Com humor e leveza, Afonso Cruz conduz uma narrativa para fazer pensar sobre o utilitarismo e o papel da arte em um mundo onde tudo precisa ser mensurado."
Análise presente na quarta capa do livro:
"Quanto vale um poema? Eis uma das perguntas que Afonso Cruz traz neste Vamos comprar um poeta. Já nas primeiras linhas dessa fábula distópica, entramos numa realidade na qual tudo é medido pelo custo, pelo lucro gerado, em relações supostamente objetivas de valor. ?Dizem que é bom transacionarmos afectos, (...) gera uma espécie de lucro?, comenta a narradora e protagonista ao receber um beijo do pai. Viver nesse mundo em que tudo precisa ter utilidade, seja lá o que for isso, afeta em cheio a linguagem das pessoas e do livro. Surge a naturalização de um falar estatístico-financeiro. Cada grama de comida, mililitro de saliva em um beijo, tempo despendido é contado e narrado. Descobrimos novos elogios e expressões mais de acordo com o espírito do tempo, como considerar alguém ?lucrativo? ou desejar ?prosperidade e crescimento? ao se despedir. Nesse universo em que tudo é contabilizado e negociável (até o corrimão da escada é patrocinado por uma marca), a protagonista faz um pedido aos pais. Como quem pede um cachorro ou um gato de estimação, ela anuncia que gostaria de ter um poeta. ?Podemos comprar um??. E, quando passa a conviver com o seu poeta, é como se a ?segunda matemática? de que fala Gonçalo M. Tavares em O senhor Henri (?existiam duas matemáticas [...] a segunda matemática, a que se perdeu nos tempos, acredito que deu origem, por caminhos e subcaminhos, à poesia?), invadisse a vida da menina. E, aos poucos, da família também. A ideia de que uma frase possa ser uma janela, ou expressões como ?sete rosas mais tarde? oferecem um novo ? e estranho ? modo de lidar com as palavras e o mundo. Sem objetivos explícitos, sem resultados mensuráveis. Como lidar com poetas, com a poesia? É outra pergunta que surge. Talvez, tão interessante quanto a reflexão sobre o valor da poesia e da arte, seja o tensionamento da ideia de utilidade, de um mundo movido pela noção de resultado como benefício material e imediato. Ecoando as inutilidades de Manoel de Barros, o desconforto dos personagens com aquilo que não tem porquê nem tem fim, Vamos comprar um poeta torna-se extremamente atual em tempos de ode à eficiência da máquina e do culto desmesurado aos números. Metáfora de um poema, a obra nos lembra que palavras dizem muito mais do que parece. E que valor significa muito mais do que alguns cifrões."
Reginaldo Pujol Filho