Jim do Pango 03/10/2010
A pesquisa, a verve e o gênio
Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto em O Leite Derramado. Havia sido bastante rigoroso na seleção das próximas leituras, pois o meu relacionamento com os livros começa muito antes do abrir da primeira página, mas eis que o último dos quatro romances do Chico Buarque me chegou às mãos e foi lido com energia.
Os poucos dias (os livros do Chico parecem ter esse defeito em comum: são curtos demais) que passei na companhia de O Leito Derramado foram suficientes para que eu decidisse que deveria ler os outros romances. Comecei por Budapeste e agora já lamento profundamente que só restem mais dois.
Budapeste é um raro encontro do conhecimento, da pesquisa e do gênio. Consta que Chico Buarque jamais esteve na Hungria antes de escrever o livro e que suas personagens e os nomes das ruas foram escolhidos em homenagem à seleção húngara de 1954, que encantou o mundo liderada por Ferenc Puskas. Não obstante, as descrições da capital magiar são precisas e não perdem a cor nem mesmo quando comparadas com as descrições do Rio de Janeiro, cidade tão familiar ao autor, que também compõe o cenário do livro.
O protagonista é um escritor anônimo, um “ghost-writer”: escritor fantasma que é comumente definido como o profissional especializado em prestar serviços de redação de textos àqueles porventura destituídos de tempo ou carentes de verve. Ou ambos.
De alguma forma o idioma magiar escolhe José Costa lhe representando, senão como uma obsessão, ao menos como um desafio. Ao mesmo tempo a narrativa em português é marcada por construções precisas próprias da pena de Chico Buarque. O autor demonstra sua inventividade criando idas e vindas na narrativa em sutilezas permitidas apenas a quem possui grande intimidade com a língua portuguesa. Em alguns pontos as trocas constantes de cenário e de disposição do protagonista me remeteram à “Construção”, a bela canção em que o Chico ousou: brincou com o português como se fosse fácil.
José Costa é o protagonista coadjuvante. É ele quem escreve, mas são outros que assinam. O tema mil vezes sutil, desperta, de pronto, a simpatia por José Costa, porquanto, em certa medida, todos nós vivemos a preparar um palco onde outros irão brilhar. É comum outras pessoas receberem os louros por um trabalho duro que nós realizamos e, por isso, o leitor julga saber como se sente José Costa quando outros assinam e se apropriam de sua esmerada produção literária.
O Duro é que o tal José parece não possuir a menor vaidade. Desta forma, à medida que as páginas foram avançando a simpatia inicial foi dando lugar a certa repulsa por esse anti-herói, que sempre toma as piores decisões possíveis e age atabalhoadamente em todas as situações.
Ele, José, naturalmente, vai dar em Budapeste, terra de um conhecido autor anônimo, se é que isso é possível. Em verdade, deveria dizer que Budapeste é terra de uma famosa obra de um escritor anônimo, porém os húngaros acreditaram que deveriam erigir uma estátua para o desconhecido escritor de “Gesta Hungarorum”, um importante tratado da história ancestral do país. Assim, os húngaros tornaram conhecido o escritor anônimo. Lá, em Budapeste, José se torna Zsoze Kósta e conhecendo Kriska começa a esquecer a Wanda.
Não sei se foi pela confusão mental, se foi pelas idas e vindas do Rio a Budapeste, mas o José Costa, “Mutatis mutandis”, me pareceu tão infeliz e tão perdido quanto o Eulálio D’Assumpção de O Leite Derramado. A Wanda é que pareceu não ser nenhuma Matilde e o quem leu os dois livros vai saber exatamente do que eu estou falando.
Por ora, dificilmente alguém me demoverá de uma conclusão: Budapeste é um romance sobre a palavra. A incursão no hermético idioma magiar nada mais é senão uma ode à língua portuguesa. E quanto mais o Zsoze Kósta se aprimora em húngaro, mais ele aprecia dizer coisas como marimbondo, pão de açúcar e adstringência.
Como nem tudo são flores, do meio para o fim Budapeste por pouco não emudece. A apatia e o declínio moral do protagonista parecem ser oferecer ao contágio. Com tudo na balança, cheguei a pensar que apenas um truque de mágica, um desfecho brilhante tirado da cartola poderia salvar a reputação do livro apesar de toda a pesquisa, apesar de todo o talento, apesar de a toda verve de Chico Buarque.
Então, eis que surge o gênio do escritor e confesso que, estupefato, ainda estou refletindo sobre os acontecimentos do fim do livro. Em português me faltam as palavras certas para descrever. Certamente elas devem existir em um idioma qualquer: em húngaro, porque não? Infelizmente, não aprendi tão bem o húngaro quando o Zsoze Kósta. Tampouco posso contar com os trabalhos do José Costa para escrever em meu lugar.
Com isso, tudo que posso dizer é que tive um feliz encontro com Budapeste.