Juju 22/08/2023
A outra face de Mary Ann Cotton
Conhecida como a primeira assassina em série do sexo feminino, Mary Ann Cotton - tendo surgido vinte anos antes do notório Jack, O Estripador - foi uma figura extremamente complexa e controversa que adquiriu sua infâmia após supostamente ceifar a vida de vários membros de sua própria família - filhos, maridos, enteados - utilizando-se de um método extremamente cruel: envenenamento por arsênico. Podendo ser obtido facilmente em farmácias populares de qualquer região, o arsênico era um composto tóxico e perigoso utilizado para diferentes funções: limpeza, remédios e estava presente até mesmo em papéis de parede de cor verde exibidos em qualquer tipo de residência, dos mais pobres aos mais ricos, como a da própria Rainha Vitória na Inglaterra. Logo, não era incomum que Mary Ann tivesse livre acesso ao arsênico, mas certamente levantavam dúvidas pertinentes o fato de que as pessoas que ao seu lado permaneciam, tinham uma tendência estranha a adoecerem gravemente, partindo logo em seguida, tendo experienciado ainda muitos sintomas agonizantes. No entanto, devemos nos recordar de que o período marcado pela história como a Era Vitoriana, apresentou quadros severos e epidemias de doenças fatais como febre tifóide, cólera e difteria. Todas essas doenças e várias outras foram responsáveis por ceifar inúmeras vidas e curiosamente desencadeavam sintomas quase iguais ou no mínimo semelhantes aos de envenenamento por arsênico, não é a toa que muitos dos óbitos que mais tarde seriam atribuídos a Mary Ann Cotton em seu julgamento extremamente atribulado, passaram supostamente despercebidos sob alegações médicas que atestavam apenas "morte por causas naturais". Então, afinal, seria Mary Ann uma terrível assassina em série, a notória Lady Killer descrita nas obras póstumas de true crime, a "Bórgia de West Auckland" ou simplesmente uma mulher pobre, marginalizada e desesperada que sofreu uma série de perdas em sequência, tendo sido injustamente condenada por uma sociedade frígida e intolerante ao sexo feminino que escolheu rechaçá-la antes mesmo que pudesse provar sua inocência? A verdade talvez nunca saibamos por completo, mas é a partir dos registros e inúmeros documentos arquivados sobre o caso que o autor irá reconstruir os passos e contar a história desta curiosa criatura que um dia habitou este mundo. Mary Ann Cotton, o Anjo Negro.
Martin Connolly é um autor irlandês - nascido na Irlanda do Norte, mais precisamente na cidade de Belfast - que realizou pesquisas em diferentes áreas do conhecimento. Dentre eles psicologia, teologia, semitismo (judaísmo) e o próprio Holocausto. Em algum ponto, enquanto realizava uma de suas pesquisas e coletava arquivos interessantes, visitando aquela região da Inglaterra, acabou se deparando com a história de Mary Ann Cotton e as pessoas lhe pediram para que escrevesse sobre ela. Para o contentamento do autor, havia bastante material disponível e ele foi capaz de compilar então esta obra posteriormente, sendo ela bastante rica em detalhes. Eu gostei principalmente do fato que Connolly não tenta julgar Mary Ann logo de cara, pelo contrário, fica evidente, conforme prosseguimos com a leitura, que ele duvidava e discordava da sentença atribuída à mesma. Isso não significa afirmar que ele a isenta de qualquer culpa, porém que está disposto a apresentar os fatos de forma imparcial, de modo que o próprio leitor possa tirar as suas conclusões - o que em suma é a essência do true crime e muitos autores cometem o erro de ignorar. A verdade é que quando falamos sobre figuras históricas, sejam elas boas ou ruins, é sempre necessário considerar o contexto da época, como diria o filósofo alemão: o zeitgeist (espírito do tempo). E sim, Mary Ann Cotton, viveu durante a Era Vitoriana em que as mulheres eram extremamente mal vistas e facilmente condenadas por quaisquer comportamentos que pudessem ser considerados diferentes ou atípicos conforme ditavam as regras de convenção. Com base nisso, pode-se dizer com certeza, que esse fator teve muita influência no julgamento da prisioneira que foi considerada culpada antes mesmo de pisar no tribunal e sequer teve o direito de uma defesa capacitada que conseguisse reunir provas que atestassem a sua suposta inocência. Longe das caricaturas de um monstro que estampavam os jornais com suas rimas e versinhos cruéis, Mary Ann Cotton era uma pessoa e suas cartas escritas na prisão são de cortar o coração. Novamente não podemos dizer que ela não era culpada, de fato, as coincidências são mesmo muito reincidentes e a quantidade de arsênico encontrada nos corpos era certamente alarmante, de modo que fica difícil acreditar que ela não teve envolvimento algum, ainda que indireto. Portanto, esse é um livro para refletir, talvez sobre seus motivos, ambições e os fatores sociais que a levaram a tomar tais decisões. Seria por maldade ou desespero? Ganância ou medo? Como eu disse, provavelmente nunca saberemos toda a verdade que Cotton levou para o túmulo, mas a partir dessa obra temos a oportunidade de compreender melhor e analisar por outro ângulo o retrato daquela que ficou conhecida como o Anjo Negro.
É um livro curto (menos de 300 páginas), objetivo e bem fácil de finalizar. A linguagem do autor é acessível, coesa e os capítulos tem uma boa quantidade de páginas, não são cansativos. A edição da Darkside é uma verdadeira obra de arte, essa capa é absurdamente linda.