spoiler visualizarboy who likes books 14/03/2024
Sobre Hollywood, anos 80 e a obsessão pela palavra pantomima
Contém Spoilers
Bret Easton Ellis sempre foi um autor que eu tinha vontade de desbravar. Sua obra mais conhecida, pelo menos no meu entendimento, “Psicopata Americano” está no meu radar há bastante tempo. Porém, consumindo conteúdo literário na internet obtive conhecimento de que o autor estava pra lançar um novo livro, o seu último tinha sido há treze anos atrás. Então, resolvi que seria interessante tentar começar por aqui. E que jornada...
“The Shards” parte de um olhar sobre a vida de Bret (sim ele é o narrador e o personagem principal de seu próprio livro), e de seus amigos enquanto frequentam a escola preparatória de Buckley em Los Angeles, nos anos oitenta. Ah, tudo isso com um serial killer a solta tocando o terror. Em primeiro lugar destaco a questão atmosférica: o autor é bastante eficiente em descrever cenários e criar atmosfera. Embora eu nunca tenha dirigido pela cidade, sinto que poderia encontrar facilmente meu caminho, dadas as inúmeras localizações de ruas e lugares que Ellis apresenta na estória. Tudo é apresentado de forma muito fluida e de fácil entendimento. O mesmo ele faz com a questão musical: os personagens estão constantemente ouvindo e mencionando músicas clássicas dos anos 80, ajudando ainda mais o leitor a mergulhar nesse universo. Em alguns momentos esse elemento é extrapolado e pode ficar irritante, mas fato é que o objetivo foi alcançado.
Em segundo lugar, desenvolvimento e dinâmica de personagens. Me soltou aos olhos a segurança que Bret demonstrou na estória que queria contar, em especial na forma como ele brinca com seus personagens na página. Nesse aspecto me lembrou muito “A história secreta” de Donna Tartt. Nenhuma dessas pessoas é “likeable” (o que para mim é evidentemente proposital), mas todos têm suas funções e características e defeitos muito bem definidos que são bem explorados pelo autor e servem muito bem o enredo. Eu adoro, por exemplo, como Robert é introduzido e como progressivamente sua presença naquela turma de amigos vai provocando rachaduras numa dinâmica que até então parecia inquebrável e de aparências. Todo mundo têm um segredo e todo mundo é um suspeito. Adoro como o protagonista fica dividido a partir da entrada desse personagem, ora é uma paranoia, ora um desejo. Também adoro como Bret aproveita todo esse cenário de elite e hollywood pra tecer uma crítica a um ambiente privilegiado, rico, de aparências e desprovido de qualquer responsabilidade. São várias cenas de festas, banhos de piscina e muito consumo de drogas, presos em seu mundinho particular. A maioria do elenco são de jovens e os poucos adultos que têm na trama não parece se importar com o que seus filhos fazem, apesar de que acho Terry um personagem um pouco desperdiçado pelo autor.
Agora, o grande ponto positivo e um dos grandes trunfos de Bret na construção do livro está na forma com ele soube aproveitar o tal do narrador não confiável. Achei genial que o personagem principal seja o próprio a autor. Isso permite que Bret logo de início coloca perguntas na cabeça do leitor ao propor investigar acontecimentos supostamente autobiográficos, mas que você nunca consegue dizer de fato o que é real e o que é ficção. Além disso, o autor propositalmente te faz desconfiar de um número enorme de personagens, inclusive o próprio protagonista. E isso, meus amigos foi delicioso! Sinceramente, Bret não é lá um personagem muito fácil de inocentar, algumas de atitudes dele em momentos cruciais são bastante questionáveis. Por exemplo, não entendi a escolha de confiar no diretor para levar a tal fita, supostamente enviada pelo “Trawler” e não direto pra polícia, e nem por que escolheu optar por guardar essa informação na sequência. Coisas assim só colocavam um “x” enorme em suas costas. O final aberto e a possiblidade de inúmeras interpretações para alguns acontecimentos importantes da trama (aquela cena do Bret com Susan no hospital, por exemplo, tipo WTF!!!), principalmente quanto a figura do “Trawler” e sua obsessão com Robert Mallory eu considero um acerto. Afinal, Robert era mesmo o “Trawler”? Se não, como o assassino tinha tanta facilidade para despejar os corpos naquele local? Por que o culto enxergava Robert como um deus a ser cultuado? Bret de fato atacou Thom e Susan? Se Robert era mesmo “Trawler” mais alguém do grupo poderia fazer parte do culto? Tantas questões sem uma resposta definitiva, com o martelo batido, que faz o leitor criar diversas teorias que levam a diversas intepretações. Eu adoro isso. Sei que muita gente tem questões com finais interpretativos e abertos, eu particularmente adoro, principalmente quando bem feitos com em “The Shards”, não é como se o autor simplesmente deixasse tudo sem respostas. Não, aqui você pode pegar vários eventos e pistas e chegar a uma conclusão que pode ser diferente de um outro leitor e isso gerar um debate. É por isso que eu considero “The Shards” uma boa leitura, porque vc fecha a última página e o livro fica com você. Terminei essa leitura já faz um bom tempo e ainda sigo pensando nesse livro.
Confesso que fiquei curioso para saber como seria a recepção desse livro se fosse publicado por aqui. O livro além de ser um senhor calhamaço tem um ritmo bem cadenciado, além do fato de que ele não é um clássico romance de horror. Pra quem lê a sinopse e está à procura do um trilher ou suspense fast- paced, pode se frustrar. Eu particularmente não senti o peso da narrativo no quesito ritmo e classifico que Bret manejou muito bem o foco no drama e a dinâmica entre os adolescentes com cenas mais pesadas e de assassinato envolvendo o serial killer. Por falar em cenas gráficas e de horror, aqui existe muitas delas. Há que se dizer que o livro tem muitos gatilhos, principalmente de violência contra animais e de violência sexual.
“The Shards” não é um livro perfeito, existiram algumas coisas que eu não curti tanto e que me fizeram tirar uma estrela: não gosto, por exemplo, de como Bret Ellis lida com a cena de estupro que o protagonista sofre em um dado momento na narrativa. Por um momento eu achei que o autor iria abordar o tópico e a oportunidade para discutir o uso do poder por parte de grandes produtores, diretores e figurões de Hollywood sobre aqueles que estão abaixo, afinal ele tinha todo os elementos propícios dentro de sua estória para ir lá e criar toda uma discussão ao redor desse tema com a relação Bret – Terry, mas infelizmente ele descarta isso e a oportunidade é desperdiçada. Pra piorar, o protagonista passa por todo um contexto traumático, mas isso parece ter pouco efeito na forma como ele age após o evento. Em se tratando de abuso sexual, o autor falha em tratar o assunto com a seriedade que tema pede e isso me incomodou muito. Outro ponto negativo pra mim está em outra oportunidade desperdiçada pelo autor. Eu gosto da forma como ele introduz o Trawler e define seu modus operandi. Aqui todo o lance do culto e do horror com animais me lembrou muito Charles Mason e a questão do pânico satânico. Eu só queria que o autor fosse mais além e fizesse comentários sobre isso pra além do grupo de amigos e explorasse mais esse elemento na atmosfera dos habitantes da cidade. Ele já provou que sabe criar atmosfera e acho que seria bastante legal ele fosse por aí. Mas enfim, nenhum desses pontos negativos destruiu o livro pra mim. Tive com “The Shards” uma experiência maravilhosa e rica, muito além de qualquer expectativa que poderia ter previamente. Sigo interessado em desbravar a bibliográfica do autor.
Ps: fiquei um pouquinho incomodado com a quantidade exacerbada com que o autor usou a palavra pantomima ao longo desse livro. Tipo, quando digo muito, é MUITO mesmo. Do tipo a palavra ser usada ao longo de vários parágrafos seguidos, em um mesmo contexto por sinal. Sei lá, achei isso irritantemente curioso e precisava comentar.