spoiler visualizaranna v. 08/09/2023
Belo livro
Atenção: a resenha abaixo é longa e cheia de spoilers. Escrevi com mais detalhes para não me esquecer dessa história bela e marcante.
Este foi o vencedor do Pulitzer de ficção de 2023, e como eu tinha curiosidade por essa autora, embarquei. Ele é inspirado em David Copperfield de Dickens, um clássico que eu nunca li, mas fiquei com vontade depois de ler Demon Copperhead. Na Wikipedia há uma lista com a relação entre os muitos personagens dos dois romances.
Demon parece ter mais ou menos a minha idade, nascido na segunda metade dos anos 1970 ou início dos anos 1980, portanto identifiquei muitos dos ambientes que ele retrata, sendo adolescente nos anos 1990. Eu sempre me apego a livros cujos protagonistas são meus contemporâneos.
Demon é o que se chama "white trash" nos EUA: nascido e criado na pobreza rural da região Appalachian (Virginia, West Virginia, Kentucky, Tennessee etc). Seu pai morreu num acidente antes de seu nascimento. Sua mãe, jovem, pobre, e sem família, criada em lares adotivos, trabalha no Walmart, não tem estudos nem grandes ambições, mas ama seu filho. Conta com a ajuda de vizinhos, e se envolve sempre com homens abusivos e truculentos. Acaba se casando com um deles, Stoner, quando Demon tem 10 anos, e o relacionamento entre eles é péssimo.
Demon encontra refúgio na família vizinha, os Peggotts, onde vive seu melhor amigo, Maggott, que é criado pelos avós, já que sua mãe está na cadeia por ter tentado matar o marido, em outra história trágica de abuso, violência e machismo. Os avós Peggotts são uma pequena ilha de estabilidade num oceano de furiosa desorganização institucional, emocional, financeira e política. Desestrutura é o que melhor define. A escola não tem muito a oferecer. O mercado de trabalho é precário. O trabalho na terra não existe mais. As alternativas de vida são muito restritas.
Dentre os filhos dos Paggotts só uma conseguiu escapar, a Tia June, que é enfermeira e mora em Knoxville. Uma pessoa instruída, amável, carinhosa, que terá importância para Demon ao longo de toda a história.
Com a morte da mãe, de overdose de opioides, sem ter família, Demon cai no serviço social americano, e é enviado para uma fazenda, Creaky Farm, onde vivem outros meninos. O “responsável” é um velho decrépito e desonesto, que semi escraviza os meninos e os faz trabalhar na fazenda a maior parte do tempo. No entanto, é ali que Demon conhece um pouco mais do mundo. Alguns dos meninos que conhece ali serão importantes ao longo do livro: Fast Forward, que é mais velho e o claro líder do grupo, um rapaz muito carismático e excelente jogador de futebol, de quem todos querem estar perto; e Tommy, o menorzinho, um dos poucos que “se salvam” na história, através dos estudos, trabalho, e relacionamento saudável.
De lá, Demon é transferido para outra família adotiva, os McCobbs, um casal com vários filhos pequenos, cujo pai está sempre inventando uma nova sacada genial que vai render dinheiro. Eles colocam Demon para dormir na lavanderia junto com o cachorro, arranjam um emprego para ele numa loja de conveniência e ainda pegam parte do dinheiro que ele junta com o trabalho. Nessa loja, ele tem que separar coisas recicláveis e de valor, no lixo. O proprietário é um indiano que trabalhou num lixão na Índia. A interação improvável entre esses dois personagens é uma das pequenas joias do livro, tão rico em termos de personagens. Outra boa interação é entre Demon e a filha mais velha do casal, que é uma menina de uns 6 anos.
Demon acaba fugindo, e parte em busca da família de seu pai, que ele nunca conheceu, apenas ouviu falar vagamente que vivem em um lugar chamado Murder Valley. Essa viagem é cheia de peripécias, inclusive um episódio horrível onde uma mulher viciada passa a perna em Demon em rouba todo o dinheiro dele. Milagrosamente, ele chega até a casa da avó, que imediatamente o reconhece, uma vez que ele é a cara do pai (filho dela).
A avó, Betsy, é outra personagem maravilhosa. Uma mulher sem frescura, que trabalha muito e acolhe meninas sem perspectivas, e as coloca no “caminho certo” da educação. Betsy vive com seu irmão, Dick, que é PCD, vive numa cadeira de rodas, mas é uma mente brilhante e culta, e tem muito senso de humor. Eles acolhem Demon por um período de relativa estabilidade.
Mas Betsy não tem como acolher Demon indefinidamente, e acaba enviando o neto para morar com o Coach Winfield, que é viúvo de uma das moças que Betsy acolheu e encaminhou na vida. Ele é treinador de futebol da high school, desfruta de prestígio na comunidade, mora em uma casa enorme e tem uma filha pouco mais velha do que Demon: Angus (na verdade, Agnes), que sem dúvida será a personagem favorita de muitos leitores (minha também). Angus é maravilhosa, e se torna grande amiga e parceira de Demon, uma pessoa que empurra ele pra frente.
Porque o que não falta é quem puxe Demon para trás. Como por exemplo sua namorada Dori, mais uma história trágica de falta de perspectiva. Dori, Demon e quase todos os adolescentes embarcam no vício dos opioides e vivem à base de remédios para continuar vivendo. O vício de Demon começa quando ele tem uma lesão no joelho, jogando futebol americano, e o remédio é ministrado para ele suportar a dor. Com a morte do pai de Dori, ela e Demon passam a morar juntos. Mas eles têm 16 anos e nenhuma estrutura. É a parte mais dark e deprimente da história, e culmina com a morte por overdose da menina, para surpresa de zero leitores.
Antes disso, quando mora com Coach e Angus, Demon frequenta a escola. Mas a high school tem pouco a oferecer. Tem o esporte, com Demon se tornando um bom jogador de futebol, até a lesão interromper a carreira. E tem o desenho, algo que ele sempre gostou de fazer intuitivamente. A professora de artes, Miss Annie, casada com o professor de história, Mr Armstrong, um casal interracial, atuam como anjos na vida de Demon, auxiliando em momentos de necessidade e incentivando Demon em sua carreira como artista.
Fast Forward reaparece como um traficante, que se envolve com Emmy Paggott, outra neta dos Paggotts, prima de Maggott, criada desde pequena pela Tia Jude. Emmy é o primeiro amor de Demon, ainda na infância, mas eles perdem contato, e quando Jude se muda de volta para Lee County, Emmy se envolve com Fast Forward depois de largar seu namorado bonzinho, Hammer Kelly, e ficar com o bad boy. Emmy acaba desaparecendo com Fast Forward, para desespero de Jude, que em certo ponto pede ajuda a Demon, e eles vão resgatar a menina quase morta numa junk house em outro estado.
Tommy reaparece trabalhando como faz-tudo em um jornal local. Eles reatam a amizade, e Tommy é um sujeito interessado pelas notícias, pelo mundo. Ele se informa, se educa, e puxa Demon para fora do lodo em que ele normalmente vive. Juntos, eles desenvolvem uma tirinha para publicar no jornal, cujo protagonista é um super-herói “redneck” que salva os habitantes da área dos problemas cotidianos. É uma crítica social que acaba agradando o público, e vai crescendo em importância. Tommy também incentiva Demon a largar as drogas.
O episódio trágico final leva Demon de volta à cachoeira “Devil’s Bathtub”, o local onde seu pai morreu, num acidente. Ele acaba indo parar lá com Fast Forward, Hammer Kelly e outros garotos, que meio brigam, meio estão bêbados e drogados, e no meio da confusão ocorrem as mortes acidentais de Fast Forward e Hammer.
Depois deste episódio traumático, a santa Tia June consegue mandar Demon para um centro de reabilitação de drogas, onde ele passa alguns anos, o final da sua adolescência. Ali conhece outros personagens e faz amigos. Nesse meio tempo, Angus foi para a faculdade fora, estudou psicologia, mas quer voltar para seu local de origem para ajudar a mudar a situação dos jovens sem rumo da região. Ela se reconecta com Demon, e os dois partem juntos para ver o mar – o eterno sonho de Demon, que ele tenta realizar ao longo do livro mas nunca consegue. É um final bonito e sugestivo, de certa forma redentor.
O forte desse romance são seus personagens. Demon é fascinante – sua riqueza interior no meio de um ambiente tão inóspito é comovente. Escrevi tão longamente para que eles fiquem comigo por mais tempo. E também os relacionamentos e sua ação fundamental na vida de qualquer pessoa – levando para cima ou empurrando para baixo.
Barbara Kingsolver retratou muito bem sua região natal, com empatia e compaixão. Quero ler outros livros dela.