spoiler visualizarVitorcfab 03/09/2022
Elos Da Mente
Acho sempre bom ressaltar que, por ser um homem branco, não terei a mesma sensibilidade de uma pessoa negra ao ler esse livro, e com certeza não consegui entender algumas camadas mais profundas. Fica aqui a melhor dica do mundo: siga mais influenciadores negros, eles terão conhecimento e propriedade para falar sobre essas questões.
Esse segundo volume tem uma atmosfera e ambientação muito diferentes de seu antecessor, pois não estaremos mais acompanhando os personagens em séculos passados, mas sim no tempo "presente", por volta dos anos 70 (época em que o livro foi escrito).
Podemos acompanhar a evolução dos planos de Doro, que por meio da reprodução seletiva, resultou na criação de uma raça de seres com grandes poderes telepáticos.
Esses seres não são meros instrumentos em um plano, mas sim pessoas cheias de sentimentos e dramas, que estão tentando sobreviver, se adaptar e encontrar um espaço no mundo.
Doro, mesmo não sendo uma pessoa boa, é um personagem fantástico, cheio de camadas e personalidade. Além de ser um ótimo personagem individualmente, gosto da forma como ele é usado para construir a história e desenvolver os demais personagens, uma vez que seus planos de criar uma raça perfeita afetou diretamente a vida de muitas pessoas.
É interessante perceber como cada personagem enxerga Doro, e nutrem sentimentos confusos e complexos por ele, como admiração, subserviência, medo e ódio.
Na segunda parte do livro, seremos apresentados a outros personagens filhos de Doro, em capítulos curtos que parecem pequenos contos, e nos permitem entender um pouco sobre essas pessoas, seus dramas e trajetórias de vida.
Em seguida, veremos a união entre esses personagens, o que proporcionou dinâmicas de grupo interessantes, tornando o livro ainda mais instigante. A junção desses personagens também guia a história para um novo caminho, um caminho que representa a próxima fase do plano de Doro.... E talvez a última.
A evolução desse plano representa algo muito maior, onde os personagens percebem que estão fazendo parte de algo grandioso, algo único, seja para o bem ou para o mal.
É nesse ponto que Mary, nossa protagonista, mais se destaca, nos mostrando suas habilidades de liderança e quanto pode ser parecida com Doro...ou talvez, uma rival dele.
Como todo livro de Octavia Butler, podemos esperar alguns comentários cirúrgicos a respeito de identidade racial/ étnica e vivência de pessoas negras.
Temos um diálogo sensacional, onde Doro se mostra orgulhoso por "não ser mais um homem negro", e de não pertencer a nenhuma raça ou etnia, pois se considera um ser acima de tudo isso. Essas falas ofendem e irritam muito Mary, que o confronta Doro toda vez que ele tenta fugir de sua ancestralidade africana.
Esse livro também fala muito sobre liberdade e livre arbítrio, aspectos básicos dos quais os filhos de Doro foram privados. Cada um deles nasceu com um destino traçado, com funções básicas que devem desempenhar, quase como animais de estimação.....ou pessoas escravizadas.
É interessante acompanhar a forma como cada personagem lida com esse dilema, bem como os impactos da opressão de Doro em suas vidas, que varia em grau de seriedade para cada caso.
Esse livro tem uma história um pouco mais condensada e concentrada do que o anterior. Acompanhamos um "curto" período de tempo, que abrange apenas alguns anos, ao invés de séculos como no primeiro livro. A princípio, achei que isso seria um problema, mas a história dessa sequência se provou sólida e com um grande objetivo.
O final desse livro pode até ter sido previsível, mas também foi fantástico, praticamente perfeito. Aquele final que muda totalmente o rumo da história, e que também mostra a grande evolução da protagonista.
Esse final é contado em poucas páginas, mas Octavia sabe como escolher palavras e estruturou seu texto de forma muito satisfatória, me fazendo vibrar com a conclusão.
Ainda prefiro o primeiro volume, mas a série "O Padronista" está consagrando cada vez mais Octavia Butler como uma das minhas autoras favoritas da vida.
--- Escrita E Fluidez ---
Eu nem sei explicar o quanto gosto da escrita de Octavia Butler, principalmente por seu texto de fácil compreensão, que torna o livro acessível e gostoso de ser lido.
Ainda que sua escrita seja fácil, também me parece muito bem pensada e estruturada. Não há exagero de descrições, pois ela escolhe cada palavra com sabedoria, conseguindo expressar diversos sentimentos de forma efetiva, além de fornecedor detalhes suficientes para plena compreensão.
Seu texto também me parece elegante, sério e inteligente, mesmo dentro de sua simplicidade. A típica definição de "menos é mais", com muita qualidade.
--- Personagens ---
Doro está bem diferente, parece que a idade amoleceu um pouco seu coração. Ainda é um ser egocêntrico, possessivo e capaz de atitudes cruéis, mas passou a ver humanos de forma mais amável, poupando suas vidas a maior parte do tempo. Às vezes parece que ele enxerga os humanos como cachorros, criaturas dóceis e úteis, por quem ele pode até criar vínculos afetivos, mas sempre deixa claro que são seres inferiores. Graças a Mary, conseguimos ver um pouco mais sobre o passado de Doro, sua origem, a descoberta dos poderes e como se deu o início de seus planos, detalhes que deixam o personagem ainda mais interessante. Doro tem uma relação diferente com Mary, pois reconhece que ela é a mais parecida com ele, o que também pode torná-la uma adversária.
Mary é a filha de Doro e protagonista dessa história. Uma mulher de personalidade forte, irritada e independente, que cresceu com diversos transtornos emocionais e psicológicos por conta de sua telepatia. Sua personalidade é forte o suficiente para não abaixar a cabeça nem mesmo para Doro. Ainda que tenham brigas constantes, Mary tem uma certa admiração e respeito por Doro, talvez até um amor problemático. Ela também sabe que sua existência é importante para Doro, e usa isso a seu favor. É questionadora e persuasiva, convencendo até mesmo Doro a compartilhar informações pessoais sobre sua origem. Não demora muito para que ela se estabeleça como líder do grupo, e demonstre grandes habilidades ao desempenhar essa função. Também fica responsável por treinar os poderes telepáticos dos demais, e ajudá-los a evoluir. Ao longo do livro, Mary se mostra cada vez mais inteligente, visionária e capaz. Doro percebe que Mary é muito parecida com ele, o que pode vir a ser um problema ou uma benção no futuro.
Emma. Uma das companheiras de Doro, que também já viveu por muito tempo e ainda mantém uma relação com Doro, pois o entende como parte de sua vida e ainda acredita em parte de seus sonhos. Ela fica responsável por cuidar de Mary.
Karl é o rapaz com quem Mary deve se casar. Ele é gentil e respeitoso, mas um homem totalmente acostumado com sua vida de subserviência, se entende até como um objeto de Doro. Teve um passado complicado e triste, também por culpa de Doro, mas lida com isso com certa naturalidade incomoda. Acompanhamos o desenvolvimento de uma relação no mínimo estranha entre ele e Mary.
Seth e Clay são outros filhos de Doro e irmãos telepatas. Porém, Clay é um fracasso total, pois não consegue controlar seus dons. Doro chegou a sugerir a morte de Clay, mas Seth interveio e se propôs a ajudar o irmão, quase como um guardião.
Rachel é uma outra telepata, que trabalha como ministra em uma igreja. Ela usa sua telepatia para assumir o controle da mente dos fiéis, fazendo com que a adorem, quase como uma forma egoísta de brincar de Deus. Isso me pareceu uma clara crítica metafórica para igrejas. Ela tem personalidade forte e uma presença marcante, talvez até assustadora, sendo considerada por Doro e Mary como a mais forte e preocupante. Rachel tem um bom papel no desenvolvimento do livro.
Jesse, um rapaz problemático que usa seus poderes telepáticos para influenciar pessoas e criar confusões.
Ada, uma mulher que sempre viveu em isolamento, com dificuldade de se aproximar de outras pessoas e que nunca conheceu outros telepatas. Ela sente um grande desejo de conhecer mais pessoas como ela, que consigam entende-la.
Jan, uma mulher que toma conta de algumas crianças de Doro, até que estejam prontas para "evoluir". Ela tem forte apego à essas crianças, não as vê apenas como uma obrigação, o que traz ainda mais problemas quando uma delas morre.