Leila de Carvalho e Gonçalves 19/06/2021
O Brasil Contemporâneo
Torto Arado conseguiu realizar um feito inédito na literatura brasileira. Tendo como autor um romancista estreante, o baiano Itamar Vieira Júnior, o livro não só venceu os consagrados prêmios Leya, Oceanos e Jabuti, como conseguiu arregimentar uma legião de leitores que extrapolou a mais ambiciosa previsão: no momento que escrevo esse comentário, o romance já vendeu mais de 165 mil exemplares sem dar sinais de arrefecimento nas vendas.
Entretanto, tamanho mérito, se posto à prova, também cobra um preço à altura. Um bom motivo para que o escritor resolvesse não procrastinar a publicação do próximo livro, já que como hábil contador de histórias, possuía bala na agulha para liquidar de vez com o estigma do ?autor de um único sucesso?.
Aliás, material ideal para uma terceira compilação de contos, o segundo título lançado pela prestigiada Editora Todavia. Sinteticamente, Doramar Ou A Odisseia reúne doze narrativas, sendo que são cinco inéditas em livro e sete foram retrabalhadas, fizeram parte de uma edição esgotada, 1000 exemplares, do livro Oração Do Carrasco que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019.
O resultado é uma seleção de contos que destila uma irreprimível solidão e diz muito do Brasil contemporâneo, mesmo quando as histórias estão ambientadas em décadas ou séculos anteriores, inclusive, algumas foram inspiradas em relatos ouvidos por Itamar durante suas viagens a trabalho pelo interior da Bahia e Maranhão. Para quem não sabe, o escritor é servidor do INCRA, geógrafo e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA, portanto além de etnógrafo de formação também é um etnógrafo da imaginação e não se trata de casualidade sua obra ser comparada a um libelo em prol das minorias sociais.
Resumidamente, quatro os contos jamais passaram pelo crivo do leitor:
* O Que Queima conta a história de um casal que não consegue viver em paz na casa que comprou com tanto sacrifício.
* Na Profundeza Do Lago gira ao redor de uma professora que decide tirar um ano sabático, após constantes embates com o conselho de ética e moral instaurado na escola onde lecionava.
* Inquieto Rumor da Paisagem tem como pano de fundo um eclipse e relata o inusitado vínculo entre uma prostituta e uma baleia encalhada na praia.
* Voltar aborda a história de Divina, proprietária do único casebre que permanece de pé, impedindo a abertura das comportas de uma hidrelétrica.
Já, Farol Das Almas, a única narrativa publicada previamente numa revista literária, reporta ao sobrenatural para reafirmar a importância econômica da escravidão para o Brasil do século XIX, a ponto do encalhe de dois navios negreiros determinar a custosa construção de um farol na costa baiana.
Quanto aos contos restantes, três giram em torno de personagens femininas. Em Alma, uma escrava decide fugir, quando se dá conta de sua condição humana; em Doramar Ou A Odisseia, inspirada no poema homônimo de Homero, as sequelas da escravidão surgem como herança familiar na vida de uma doméstica; finalmente, No Mar discorre sobre a migração ilegal a partir de uma senegalesa que se recusa a aceitar o afogamento do marido durante a travessia do Atlântico.
As outras narrativas são:
* A Floresta Do Adeus é uma distopia que pode ser compreendida como uma alegoria à polarização ideológica do país.
* O Espírito Aboni Das Coisas esclarece o que é a honra mediante a perspectiva indígena.
* A Oração Do Carrasco amplia a discussão sobre a interrupção da vida, envolvendo até a senciência dos animais.
* Manto Da Apresentação se debruça sobre o encontro de arte, miséria e loucura na vida do genial artista plástico Arthur Bispo Rosário, que passou mais de cinquenta anos internado na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, sob o diagnóstico de esquizofrenia e paranóia.
O resultado é fascinante, certamente um dos melhores lançamentos de 2021, e se você gostou de Torto Arado, torceu por Bibiana e Belonísia, também irá se encantar com esses contos cuidadosamente tramados por um artesão da palavra, um mestre da oralidade, um perito construtor do tempo narrativo que é capaz de de escrever longos parágrafos, embebidos de força e lirismo, sem perder a atenção do leitor e implacável, nocauteá-lo a cada desfecho. Viva Itamar!
?Um poeta cultiva palavras como um homem da terra cultiva o grão. Um poeta colhe mudanças, um homem da terra colhe a vida. Um poeta colhe o desdém, um homem da terra colhe a praga. Uma palavra somente é viva se ela transforma; encerrada em um livro, não vive ? é preciso lê-lo. O alimento só alimenta se amadurece. Você pode lançar sementes na terra e elas não germinarem. Mas, caso cresçam e se mostrem vivas, as sementes irrompem a terra como as palavras irrompem um livro, um muro, um aviso.? (Oração do Carrasco, posição 56)
Nota: Adquiri o e-book, recomendo.