spoiler visualizarana 05/06/2021
nenhuma surpresa
Essa resenha talvez se torne mais uma em um mar de dezenas novas e antigas, mas acho válido apontar a minha visão particular sobre o livro enquanto leitora. O que eu disse na outra resenha vale pra essa: quem não concordar, quiser discutir/debater a resenha e o livro comigo, podem me chamar na dm do twitter, é o mesmo user daqui.
À resenha, para não ficar na enrolação.
Aviso: há menções de estupro, homofobia e misoginia, então peço que não leia se não se sentir confortável, sua saúde mental vale mais do que uma leitura.
Bom, eu não tinha intuito nenhum de ler esse livro, não porque era nacional nem nada do tipo, mas, porque eu realmente não tinha expectativas boas, e não pretendia ter nenhuma relação, ainda que indireta, com a autora, principalmente depois do que rolou com o último livro, mas isso aqui é outra questão que não cabe aqui nesse momento. Mas, me chamaram pra ler e eu aceitei, pensei, bom, deve ter melhorado algo ? mantendo meu pé atrás.
E realmente, para não dizerem que vejo tudo negativamente, houve sim uma melhora significativa do outro livro pra esse. É notável a melhora na ortografia, agora há bem menos erros de português em relação ao livro anterior, o que indica, no mínimo, um interesse da autora em melhorar. Só seria interessante se esse interesse tivesse sido geral, mas vou falar disso mais pra frente.
Em primeiro lugar, ainda mantenho minha crítica quanto à escrita. Veja bem, escrita, não ortografia. A escrita em Heaven permanece mecânica, monótona e sem graça, e digo isso não como uma ofensa pessoal, mas cada palavra carecia de uma fluidez que eu, enquanto aspirante a escritora, entendo como necessária. Cada palavra deve se ligar à próxima em um ritmo determinado, quase como se houvesse um fio que as puxassem. E infelizmente não tinha isso. As frases são mecânicas, pouco organizadas entre si tanto no plano da frase quanto no do parágrafo, porque é como se elas não constituíssem uma sequência lógica, com nexo e sentido. Ademais, achei a maioria extremamente rasa, e não demonstra, de fato, quem são as personagens, fica tudo no mesmo, falando o mesmo de novo e de novo. Numa repetição que, ouso dizer, indica só uma falta de criatividade e percepção do significado. A exemplo disso, em menos de 5 páginas a autora repete a mesma metáfora: os olhos do personagem são azuis como o oceano e ela quer se afogar neles. Nada contra essa metáfora, embora seja quase uma frase feita, mas a minha questão com elas é onde e como elas se encaixam na narrativa. Pra mim, uma metáfora é mais do que uma mera correlação entre duas coisas, é uma maneira de ultrapassar a objetividade em direção à uma subjetividade, em geral, poética. E não há nada de poético na maneira como essa metáfora foi usada, a personagem mal havia dado um olhar para o personagem em questão, não sabia nem mesmo o nome, e esse deslocamento dá uma sensação meio estranha em quem está lendo, que sente como se aquilo não estivesse no lugar certo, na hora certa, não fizesse sentido. Talvez porque não faça mesmo. Faltou uma maior sensibilidade na hora de escrever que mostrasse o empenho da autora. Vou usar a mesma ideia que eu usei na outra resenha, mas que acredito que se encaixe aqui de novo. Nesse livro, é recorrente a percepção de que tudo está ocorrendo rápido demais, desinteressadamente demais, muito momentâneo, por assim dizer. As próprias ações e falas dos personagens ficam naquele momento e só, você não consegue se aprofundar por meio da escrita, o que eu, fique claro que é uma opinião, vejo como essencial: a capacidade de imergir em uma obra por meio das palavras. Só que quando tudo fica no mesmo é difícil criar aquela relação com a história, com os personagens.
Personagens esses que também mais parecem uma folha de papel do que outra coisa, dada tamanha profundidade...
A própria Grace por si só é um estereótipo ambulante, a típica garota que não é como as outras, que é diferente por não gostar de maquiagem e por ler. E isso é extremamente problemático, ainda mais na maneira como a autora retratou essa questão. A Grace não é diferente só porque ela fica em casa enquanto as ?pessoas normais? estão indo em festas. A todo o momento a autora tenta ?isolar? a Grace das outras mulheres, tudo fundado em reprodução de estruturas e pensamentos machistas e misóginos. A Grace é ?diferente? porque as outras personagens são retratadas como ?doidas?, ?loucas?, ?obcecadas? e ?surtadas?. Logo no começo, é dito: ?Caminho com Noah até meu carro, já que o dele está no conserto graças a uma fã maluca que destruiu o seu carro com uma chave de fenda e um martelo?, sinto muito, mas é inegável a problemática nesse trecho. Uma ?fã maluca?, já começamos com a representação de mulheres como ?doidas? e obcecadas por homens, a ponto de serem ciumentas e violentas, vide ?chave de fenda e martelo?. E isso tudo só pra mostrar como a Grace é diferente, só como ela não é apaixonada pelo Noah, como ela não se derrete pelos homens, como ela é ?difícil?, enquanto as outras são ?malucas?. Vê o problema?
Infelizmente, essa não é a única cena, porque em outro momento que vou citar mais pra frente a autora repete essa mesma ideia de que uma ?mulher maluca? abusou do personagem masculino; novamente, essa ideia de que mulheres são surtadas. Não sou eu quem diz isso, que mulheres são ciumentas e ?malucas?, é a autora, que coloca essas personagens nessas posições. E isso é, sim, problemático e me deixa perguntando como uma autora e cinco leitoras betas não perceberam a reprodução de ideias machistas?
Ainda na questão feminina, em determinado momento da fala, a autora decide que somente reproduzir falas problemáticas não é o suficiente, então aparece a rivalidade feminina pra completar o pacote. A personagem é introduzida do nada, apenas para rivalizar com a personagem chamando-a de ?vaca sem estilo? e, quando o personagem aceita transar com ela, e não tem uma ereção, a primeira coisa que o amigo dele responde é ?Todos sabem do seu longo histórico e vão achar que o problema é com a própria Mandy?. Posso ser a única aqui, tudo bem, mas pra mim isso me soa muito como ?o problema é a garota?, ela que não é bonita o suficiente, gostosa o suficiente para fazer o homem ter uma ereção, e é essa normalização de que a mulher é sempre rebaixada que me incomoda, não somente nessa cena, mas ao decorrer do livro como um todo. E não fica só no próprio livro, não, porque em determinado momento o personagem lê As Peças Infernais e a única resolução que ele tira é que a Tessa é apenas uma mulher que ?não sabe para quem dar?. Isso mesmo, até uma personagem conseguiu ser reduzida à virgindade, ao ?ela é indecisa?, e acho que já ficou bem claro nesse ponto o problema em falas como essas, né?
Mais pro final, inclusive, quando algumas revelações vêm à tona, a própria amiga da personagem é colocada sob essa visão negativa de ciumenta e como a própria personagem diz, ?patética?, por querem proteger a amiga. Não digo que foi certo a Triz ter mentido, porque não acho, mas a própria Grace não se importou muito com isso, dado que ela parecia afastar a suposta melhor amiga cada vez mais só por causa disso. Uma rivalidade que não era necessária e não serviu pra nada, então, qual o propósito?
Eu ia mencionar também como a autora vê problema em falar ?maria-patins?, mas não ?maria-fofoqueira?, mas me soa como problematizações demais pra uma resenha só, então em frente.
De volta à questão dos personagens, outra coisa que notei que a autora não mudou, ou não se preocupou em mudar é a naturalidade com que ocorrem os diálogos e as interações entre personagens. Ao segundo, primeiro. Meu problema aqui é que a maioria das reações são forçadas, sendo bem perceptível isso em algumas cenas, como quando o personagem dá uma gargalhada quando lhe oferecem mais comida. Não são reações e gestos comuns, que se adéquem à cena e ao contexto, são gestos ?feitos?, expressões ?feitas? pra tentar causar algum impacto, alguma intensidade, mas que só adicionam ao efeito de incompatibilidade que perdura no texto. Eles riem, mais especificamente gargalham, em situações onde essa reação não é cabível, não seria o esperado, e às vezes não é o adequado, ponto. Personagens são uma representação de seres humanos, as atitudes deles são baseadas na realidade, então cabe fazer sim essa adequação, o que retomaria o que eu falei lá no começo da fluidez e da continuidade da leitura. Tudo são aspectos que contribuem para a qualidade da obra, e que não devem ser simplesmente deixados de lado, porque a cada coisinha dessas a sensação que me fica é que não houve uma preocupação ou um interesse mínimo para com a própria obra, foi feito mediocremente para um público que aceita. Fique claro que minha crítica em relação a isso é maior que uma única frase, e que essa foi a sensação que eu tive, não se trata de um ataque a ninguém, até porque essa não é a meu lugar, nem intuito aqui.
Ao segundo aspecto, então, os diálogos. Vou bater na tecla da fluidez e da conexão intertextual porque sinto que isso faltou muito e vejo como o ponto central da questão nesse momento. Os diálogos são, também, rasos. As personagens têm falas curtas, que não realmente dizem nada, não contam nada, e muitas delas são meramente repetições do que o personagem anterior disse, o que não acrescenta em muita coisa para o desenrolar da cena e da própria história. Parece que está andando em círculos sem chegar a lugar algum, além de tornar as cenas completamente desnecessárias e passáveis. Desculpem-me a repetitividade, mas são frases-feitas, que tentam acrescentar certo efeito dramático, uma significância a mais, mas que acabam só ficando mal feitas e quebradiças, não há aquela coesão tão esperada entre uma e outra.
Prosseguindo, porque ainda tenho muito a falar, e não queria me estender muito mais do que o necessário.
Outro ponto que acho necessário e importante mencionar é que quando a autora tenta, nos diálogos, criar algo que não sejam frases prontas de efeito, ela tenta o humor. E aqui precisamos sim perguntar o que consideramos humor? Porque, ao meu ver, zoar os outros, homofobia e machismo não constituem humor, ponto. Não são, e você tentar passar como tal é extremamente problemático e mostra pouco interesse em problemas reais. Sim, estou falando aqui das cenas que foram sustentadas em piadas homofóbicas. A esse ponto, quase todos devem saber do que estou falando, mas deixarei a cena aqui, de qualquer maneira:
?? E quem foi que mordeu a porra do meu traseiro, caralho?
Seth gargalha e todos nós o encaramos, sabendo que ele sabe de algo. Ele dá uma respirada funda, se acalmado.
? Quando eu estava subindo com a Grace, você estava com o Colin e o Jef.
? Oh, meu Deus, Oh, meu Deus. Oh, meu Deus. Oh, meu Deus. ? Noah leva as mãos até a nuca e depois até a sua bunda por cima da calça. ? Meu cu ainda está intacto?
A cozinha explode em uma gargalha (sic) enquanto Noah tem seus olhos arregalados. Ryle procura a cadeira mais próxima e desaba rindo.? (Capítulo 39)
?? Adivinhem só, meu cu está intacto! ? Noah abre um sorriso contente enquanto Jef, Colin e Triz se aproximam sentando-se também, formando um círculo.
? Pois é. Foi uma garota louca que mordeu sua bunda, não a gente.? (Capítulo 41)
Um adendo que devo fazer antes de entrar propriamente na questão é que essa cena do capítulo 41 é seguida de um comentário dizendo que Colin é o único jogador homossexual e que seus amigos não aceitam nenhum preconceito. Engraçado como a autora coloca um comentário desses logo após fazer uma insinuação homofóbica. Na realidade, reitero o que disse, não foi insinuação, foi descaradamente homofóbico.
Contextualizando, eles estavam em uma festa, dormiram e o Noah acorda com uma mordida na bunda. E claro, para a autora pareceu completamente normal e nem um pouco problemático fazer o personagem apontar para os dois únicos, diga-se de passagem, personagens LGBT+ do livro, porque de todos ali, para ela soou óbvio colocar um casal aquileano em uma posição de abusadores e estupradores. Isso é extremamente problemático e reproduz sim a ideia de que homossexuais não são confiáveis porque ?na primeira chance eles abusariam de você?, não sou eu quem está dizendo isso, é a própria história e a sociedade homofóbica. Pior ainda, a questão inteira não é tratada com a seriedade necessária, haja vista que esse é um discurso inserido em uma realidade de preconceito e violência. Não, a autora faz questão de tratar isso como uma grande piada em que todos gargalham e está tudo bem, porque logo em seguida ela insere o básico discurso que homossexuais também merecem respeito, mas cadê esse respeito? Parece até irônico falar isso depois de insinuar que eles abusaram do personagem hétero.
Isso para também mencionar como além da homofobia, a culpa toda recaí sobre uma mulher, novamente colocada sob uma perspectiva negativa de ?doida?. As problemáticas continuam a surgir e me impressiona ninguém ter dito nada para a autora até esse momento, me deixa perguntando até que ponto vamos tratar obras nacionais com luvas de pelica a ponto de ficarmos receosos de falar algo por medo de levar hate em massa?
Enfim, um desabafo, mas há ainda mais um ponto que quero tratar nesse mesmo tópico: o Jef. Bom, o Jef é um dos personagens do livro, e um dos únicos personagens lgbt+, só que coloco um ?mas? aqui; o Jef pode até ser um personagem lgbt+, mas até que ponto é verdadeiramente uma representatividade válida? Veja bem, estou querendo ver como a representação desse personagem se encaixa dentro do contexto da obra, só isso. Porque se trata de uma representação estereotipada e de certo modo, também preconceituosa. O Jef é o típico personagem gay extravagante chaveirinho da personagem principal, e o problema de uma representação dessas é que reforça discursos violentos ? mais simbólicos que físicos ? e coloca minorias como suportes para a ascensão e o desenvolvimento de personagens brancos padrões, isso reduz ela a mero ?adendo?. Usar uma representação dessas, que é um dos maiores estereótipos homossexuais não traz nada de positivo, nada de bom ou relevante, apenas reforça esses discursos homofóbicos que matam no dia a dia.
Uma pergunta que fica é por quê? Por que tantos estereótipos? Por que esses estereótipos? Não quero insinuar nada aqui, mas isso vai muito além de desconhecimento...
E não somente a representação do Jef, mas o vocabulário utilizado em mais de um momento do livro também deixa transparecer a falta de preocupação da autora em ir atrás de um conhecimento que é bem acessível para quem deseja saber. A palavra ?boiola? é usada em mais de um momento com conotação negativa, e usada, pasmem, pelos dois personagens héteros, os quais acham que chorar, se emocionar e se apaixonar é algo ?boiola?. Não é. E faltou sensibilidade pra perceber o uso de palavras como essas que podem parecer inofensivas, mas que significam muito mais em um contexto social maior.
A leitura desse livro foi tão difícil quanto a do livro anterior, não nego. As decisões que os personagens tomam ao longo da narrativa não condizem umas com as outras, e, acima de tudo, não condizem com o que nos é dito. A personagem tem traumas de perseguição, mas aceita sair com desconhecidos; a personagem perdeu a memória, mas parece não se importar muito com isso; são coisas assim, essas pequenas incoerências que minam as bases de qualquer livro. Esse negócio mesmo de perder a memória, pra mim, constituiu a maior falha, o maior furo de enredo da obra. Como alguém perde tanto tempo assim da vida e se conforma tão rapidamente? Como algo tão central na vida da personagem não é uma vez sequer mencionado, indicado ao longo do desenvolvimento da história? Vou chamar de desenvolvimento pois me faltam sinônimos. Mas, foi algo que me incomodou na leitura, porque várias cenas foram oportunas pra inserir pequenos indícios, rastros de que ela havia perdido a memória, o que consolidaria esse desenvolvimento da personagem, mas não, a autora preferiu só ir falar disso lá pela metade do livro e realmente dar uma atenção a algo tão grande assim no final do livro.
O final.
Sei que ninguém mais deve estar lendo isso aqui, mas minha última crítica vai para o final. Como eu disse, a autora só vai tratar do tema central lá pelo final do livro, nas últimas páginas mesmo, o que, por sua vez, apressou muito a conclusão do livro. Tudo pareceu muito corrido, muito apressado para dar logo o final feliz dos personagens principais sem se atentar que havia coisas que mereciam mais atenção, mais desenvolvimento, não só uma conversa de roda e simplesmente tudo está resolvido. Enfim, a questão da memória da Grace e as descobertas que ela faz podiam ter começado bem antes, sendo introduzidas desde o começo, o que daria muito campo pra autora trabalhar na conclusão de maneira coerente.
Foi isso. Se alguém quiser comentar algo, ou só debater comigo algo que eu disse e não concorda, ou concorda, pode me chamar pelo skoob ou pelo twitter.