Lurdes 06/05/2021
Que lindo seria se Carolina Maria de Jesus e Françoise Ega tivessem se conhecido.
Posso imaginá-las tomando um café em São Paulo ou em Marselha, conversando sobre seus filhos, as dificuldades enfrentadas por ambas para sobreviver em condições adversas, vítimas de racismo, preconceito, desigualdades sociais e econômicas.
Mas o assunto principal da conversa de Carolina e Françoise seria a escrita, que move a vida destas duas grandes mulheres, grandes escritoras.
Não se enganem com a simplicidade de suas vidas. Duas mulheres fortes, conscientes das injustiças a que são submetidas, não se conformam e lutam, cada qual à sua maneira, para reverter esta situação.
Cartas a uma Negra é um apanhado de cartas escritas por Françoise a Carolina, que apareceu em uma matéria em uma revista francesa e encantou Ega.
As duas nunca se encontraram, mas a existência de Carolina serve como um incentivo para que Françoise siga seu sonho de se tornar escritora.
"Você tem que falar sobre lanchonetes e piscinas! Garotas bronzeadas tomando banho nas praias, as pessoas adoram isso! Quem vai se interessar por histórias de negros??. Eu poderia ter desanimado. Mas, Carolina, vejo você escrevendo à luz de vela, sem a presença de ninguém para lhe dizer que tipo de mamoeiro você é, me debruço então sobre uma nova página e a encho de realidade".
São relatos pungentes que nos envolvem, nos causam revolta, admiração e esperança.
A realidade de Françoise não é tão dura como a de Carolina, mas ela, mesmo com curso técnico, na condição de imigrante antilhana, negra, em Marselha, consegue apenas trabalhos como faxineira ou outras atividades subalternas, submetendo-se a patroas exploradoras que muitas vezes nem se davam ao trabalho de perguntar seu nome.
"Os dias serão semelhantes uns aos outros, os anos uns aos outros, já as madames serão sempre as mesmas, anônimas e tristes. O gado humano que vem da minha terra será distribuído ao acaso por todos os cantos da França. Ninguém vai perceber, vai se tornar algo natural. Tendo uma irmã que conseguiu um trabalho assim, o estudante evitará falar sobre o assunto, e a irmã dirá que não é o caso dela: então tudo ficará bem, para a alegria de uns."
Em um trecho do livro, ela consegue viajar a Paris com os filhos e resolve enviar postais a ex-patroas. Sua fala reflete muito o que vemos ainda hoje quando pessoas de classes menos favorecidas conseguem alguns feitos como viajar, ingressar em uma universidade, dentre outros.
"O que seria mais divertido do que escrever as seguintes palavras a uma patroa que a imagina enraizada numa região: ?Envio lembranças de uma Paris ensolarada?. Já a vejo jogando com desprezo o cartãozinho numa cesta de lixo, ou dizendo: ?Só faltava essa".